quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

CÂNTICO NEGRO

Vem por aqui – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: vem por aqui!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: vem por aqui?
(...)

Se vim ao Mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
(...)

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: vem por aqui!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí!

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo
Fernandes, Paulo Cesar (Keine Grenze
22/06/2009

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