quarta-feira, 4 de novembro de 2015

20151104 Morte e Vida Severina (60 anos

São 60 anos da obra.
Que mudou no Brasil?

João Cabral de Melo Neto


Morte e Vida Severina.




ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO 
UM DEFUNTO NUMA REDE, 
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! 
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU 
QUEM MATEI NÃO!" 

— A quem estais carregando, 
irmãos das almas, 
embrulhado nessa rede? 
dizei que eu saiba. 
— A um defunto de nada, 
irmão das almas, 
que há muitas horas viaja 
à sua morada. 
— E sabeis quem era ele, 
irmãos das almas, 
sabeis como ele se chama 
ou se chamava? 
— Severino Lavrador, 
irmão das almas, 
Severino Lavrador, 
mas já não lavra. 
— E de onde que o estais trazendo, 
irmãos das almas, 
onde foi que começou 
vossa jornada? 
— Onde a caatinga é mais seca, 
irmão das almas, 
onde uma terra que não dá 
nem planta brava. 
— E foi morrida essa morte, 
irmãos das almas, 
essa foi morte morrida 
ou foi matada? 
— Até que não foi morrida, 
irmão das almas, 
esta foi morte matada, 
numa emboscada. 
— E o que guardava a emboscada, 
irmão das almas 
e com que foi que o mataram, 
com faca ou bala? 
— Este foi morto de bala, 
irmão das almas, 
mas garantido é de bala, 
mais longe vara. 
— E quem foi que o emboscou, 
irmãos das almas, 
quem contra ele soltou 
essa ave-bala? 
— Ali é difícil dizer, 
irmão das almas, 
sempre há uma bala voando 
desocupada. 
— E o que havia ele feito 
irmãos das almas, 
e o que havia ele feito 
contra a tal pássara? 
— Ter um hectares de terra, 
irmão das almas, 
de pedra e areia lavada 
que cultivava. 
— Mas que roças que ele tinha, 
irmãos das almas 
que podia ele plantar 
na pedra avara? 
— Nos magros lábios de areia, 
irmão das almas, 
os intervalos das pedras, 
plantava palha. 
— E era grande sua lavoura, 
irmãos das almas, 
lavoura de muitas covas, 
tão cobiçada? 
— Tinha somente dez quadras, 
irmão das almas, 
todas nos ombros da serra, 
nenhuma várzea. 
— Mas então por que o mataram, 
irmãos das almas, 
mas então por que o mataram 
com espingarda? 
— Queria mais espalhar-se, 
irmão das almas, 
queria voar mais livre 
essa ave-bala. 
— E agora o que passará, 
irmãos das almas, 
o que é que acontecerá 
contra a espingarda? 
— Mais campo tem para soltar, 
irmão das almas, 
tem mais onde fazer voar 
as filhas-bala. 
— E onde o levais a enterrar, 
irmãos das almas, 
com a semente do chumbo 
que tem guardada? 
— Ao cemitério de Torres, 
irmão das almas, 
que hoje se diz Toritama, 
de madrugada. 
— E poderei ajudar, 
irmãos das almas? 
vou passar por Toritama, 
é minha estrada. 
— Bem que poderá ajudar, 
irmão das almas, 
é irmão das almas quem ouve 
nossa chamada. 
— E um de nós pode voltar, 
irmão das almas, 
pode voltar daqui mesmo 
para sua casa. 
— Vou eu que a viagem é longa, 
irmãos das almas, 
é muito longa a viagem 
e a serra é alta. 
— Mais sorte tem o defunto 
irmãos das almas, 
pois já não fará na volta 
a caminhada. 
— Toritama não cai longe, 
irmãos das almas, 
seremos no campo santo 
de madrugada. 
— Partamos enquanto é noite 
irmãos das almas, 
que é o melhor lençol dos mortos 
noite fechada. 


===

Com o coração voltado para o mundo, mas centrado no Brasil me ponho a pensar de tantas mortes morridas e de tantas mortes matadas ainda nesta terra presente.

Valha-me irmão das almas, quanto ainda por fazer. Quanta obra inacabada, quanta vida desperdiçada.

Meu olhar se perde no vazio do tempo e nada vejo de diferente. Sessenta anos perdidos.

Mas segue teu rumo irmão das almas, fico eu aqui com meus atropelos, e refletindo com meus botões. Pois a vida pede algo que nem sempre lha podemos dar.

Vai. Que o mundo é grande e não aceita o medo. Vai desbravar montanhas e serras, vai.

Sigo aqui guardando a hora, de ver tudo, mas tudo mudar.

Até lá!

Paulo Cesar Fernandes - 04/11/2015 

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