quinta-feira, 17 de julho de 2014

20140717 D. Pedro Casaldaliga e sua lucidez

D. Pedro Casaldaliga

Entrevista a Cadernos do Terceiro Mundo

8 de julho de 2012
 
Cadernos do Terceiro Mundo N° 224
Ano 2000 - Setembro/Outubro





A última palavra é dos pobres


Aos 72 anos, o bispo matogrossense, espanhol de nascimento, explica sua trajetória pastoral com uma simples frase: "Pecado é não fazer política"

Cícero Henrique



O bispo de São Félix do Araguaia, D. Pedro Casaldáliga Piá, conhecido internacionalmente pelas posições ideológicas bem definidas, diz que o Brasil precisa de uma Operação Mãos Limpas para garantir o retorno da credibilidade à classe política.


"Se há corruptos roubando dinheiro público, é porque há corruptores do outro lado e uma sensação de impunidade nas duas pontas", resume o bispo, nesta entrevista que concedeu a cadernos do terceiro mundo na sede da regional oeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Cuiabá.


Filho de um lavrador-vaqueiro, Casaldáliga, espanhol de nascimento, chegou ao Brasil como missionário, em 1968. No mesmo ano, optou pelo trabalho em Mato Grosso. Eram tempos difíceis, em pleno regime militar. Com inúmeros livros editados, inclusive em catalão e castelhano, o bispo mantém sua postura progressista. Aos 72 anos, explica seu posicionamento com uma simples frase: "Pecado é não fazer política".



Religioso da Congregação dos Missionários Claretianos, D. Casaldáliga atua junto a pastorais, já dirigiu revistas, rádios, escreveu para jornais e até fez teatro. Com esse perfil sente-se autorizado a admoestar autoridades pilhadas em situações delicadas, do ponto de vista moral ou político.



Nesta entrevista, além de apontar a incompetência do Judiciário para punir a corrupção, pede a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as acusações que pesam contra o presidente Fernando Henrique Cardoso, fala da dívida externa, da ala progressista da Igreja e do trabalho com a prelazia, na região que costuma chamar de "nortinho".





Qual a análise que o senhor faz do governo Fernando Henrique Cardoso, atualmente?

D. Pedro Casaldáliga Piá - Sobretudo nas célebres comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil, Fernando Henrique Cardoso mostrou por que vinha acumulando uma imagem negativa: porque no seu governo falta o diálogo, negando-se a conversar com a oposição, esquivando-se de críticas e até se negando a reconhecer o direito dos povos, fato mais do que legítimo num processo democrático. A imagem do que foi a repressão dos povos indígenas na Bahia certamente deixa qualquer cidadão humilhado. Foi como me senti. O governo parece cínico. Além disso, reconhecemos que estamos submetidos a uma dívida bastante poderosa que, a cada dia, denigre ainda mais nossa imagem lá fora. Não adianta mentir, mentir e mentir. Chega a ser mesmo ridícula a encenação do escândalo que envolve o ex-secretário da Presidência. Por que não se aceita uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar os fatos? Se isso ocorresse, a população ficaria mais tranqüila.


Desde sua chegada ao Brasil, há 32 anos, o senhor considera que o país está mais corrupto?

Casaldáliga - Acho que, atualmente, se conhece mais a corrupção. A mídia não tem dúvida de que há muitas possibilidades de corrupção e isso é esboçado diariamente, o que não ocorria em épocas anteriores. A famigerada distribuição de renda tem facilitado os atos de corrupção. E, se há corruptos roubando dinheiro público, é porque há corruptores do outro lado e uma sensação de impunidade nas duas pontas.


O senhor acompanhou o assunto do escândalo Eduardo Jorge?

Casaldáliga - Acompanhei pela mídia e lamento profundamente que não se faça uma CPI limpa, redonda, para apurar as denúncias. Ficaríamos todos mais tranqüilos e o prestígio do presidente só teria a ganhar, principalmente se ele não tiver culpa no processo. O povo assistiu estupefato à resposta do presidente, que disse assinar um documento sem saber o que estava assinando. Isso eu até aceitaria, porém, de um pobre sertanejo que dificilmente sabe ler. Agora, de um sociólogo... Essa desculpa do Fernando Henrique, além do mais, é muito pouco inteligente.


O que pensa do neoliberalismo?

Casaldáliga - A política neoliberal é o capitalismo assassino. É onde o capitalismo é levado às últimas conseqüências, porque, mais mundializados do que estamos, impossível. A situação atual conflita com o que tinha antes. Ou seja, quando ainda havia regimes socialistas e comunistas, existia no mundo um certo equilíbrio de forças. Hoje, o capitalismo neoliberal tem as mãos livres, não existe complicador. Daí a bandalheira em que se encontra o Brasil em pleno ano 2000.


Como o senhor define a globalização?

Casaldáliga - É o capitalismo neoliberal mundializado. Aliás, é inclusive uma palavra gringa, que já indica de onde é que vem o império persistente de hoje em dia. Eu sou a favor da mundialização, acho que até Deus é a favor da mundialização, porque a humanidade é uma só. Mas queremos outro tipo de mundialização. Um modelo que seja discutido, como, por exemplo, a mundialização da solidariedade, da partilha, de iguais oportunidades para os diferentes povos e para as diferentes pessoas e culturas. Longe de ideologias político-partidárias.



A Igreja Católica, hoje, apresenta um avanço do chamado setor carismático. Está aí, por exemplo, o padre Marcelo e outros que, de certa forma, acabam classificados de produtos. Como o senhor vê isso?

Casaldáliga - Você sabe que há carismáticos católicos e carismáticos evangélicos. Isso é fruto, em parte, da religiosidade, da gente que está vivendo em um mundo terrível. Se apela mais facilmente para um tipo de religiosidade consoladora, estimulante, de curas, de milagres e consolação interior. Por outro lado, não tenho dúvida de que o povo do mundo inteiro passa mal e apela a essas religiões um pouco mais imediatistas. Se o povo da classe média pratica essa religião, isso não significa dizer que não estariam com uma visão da religião cristã menos voltada por uma luta de justiça e libertação. A classe média, logicamente, fará sempre uma opção por uma Igreja mais carismática do que por uma igreja de libertação.



Esse crescimento do setor carismático, em tese, freia um movimento evangélico como o do bispo Edir Macedo?

Casaldáliga - Se for carismático bem cristão, a pregação é a mesma, ou seja, Pai, Filho e Espírito Santo. O problema é que o imediatismo acaba complicando a decisão das pessoas. Eu costumo dizer uma expressão gráfica, ou seja, que o Espírito Santo é representado por uma pomba com as duas asas. A asa direita seria contemplação, a gratuidade e a intimidade. A asa esquerda seria a profecia, a militância e o compromisso. O movimento carismático facilmente pode pecar por cortar a asa esquerda do Espírito Santo. Dirão que nós, os da Teologia da Libertação, cortamos a asa direita. Vamos fazer questão de respeitar as duas asas, contemplação e luta. 4 E os progressistas, a ala que pratica a Teologia da Libertação, acabam sendo prejudicados com o crescimento dos carismáticos?Casaldáliga - A Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), essas igrejas que vocês chamam de progressistas não têm hoje, logicamente, o gancho publicitário que tinha anos atrás, quando era novidade. Isto, por um lado. De outro lado, já está muito mais diluída na própria vida normal da Igreja, há muitos textos e registros no Brasil e em outros países sobre isso. Muitos textos de encíclicas papais, que são também utilizados na Teologia da Libertação, esboçam este raciocínio. Se você quiser, há até expressões do próprio papa que podem parecer marxistas, como "os ricos cada vez mais ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres". Isso é dialético: o conflito entre trabalho e capital.<p>Eu acho que a Teologia da Liber-tação já deu uma grande contribuição à Igreja e abriu um caminho irreversível de compromisso da fé com a vida concreta, da Bíblia com a política, da terra com o céu, que era retomar o ministério da reencarnação. Nós, cristãos, acreditamos em um Deus de carne, que se fez pobreza, se fez morte e se fez ressurreição.



Com relação ao papa, como o senhor vê as indicações de bispos mais conservadores pelo Vaticano?

Casaldáliga - O problema é que não é só o papa quem indica. Agora, menos ainda, com a idade em que se encontra. São os bispos e os cardeais que sugerem. Eu admito que, oficialmente, nos últimos anos da Igreja, há um certo processo de involução. Em parte, se faz questão de nomear bispos mais de centro. Agora, sempre há alguma nomeação de bispos, desses que vocês chamam de progressistas e que contam com o respaldo das Comunidades Eclesiais de Base. Atuam, de preferência, em pastoral social. Veja bem, há de tudo um pouco.



Em termos políticos, de conscientização, qual foi a grande conquista no Brasil, até hoje?

Casaldáliga - Sem dúvida, a consciência do povo. Apesar de todos os pesares, há muito mais consciência hoje do que há 30 anos, quando eu cheguei aqui.<p>Fruto disso, os movimentos populares e todo movimento da cidadania, essas marchas que estamos presenciando nos últimos anos, esse próprio plebiscito de agora contra a dívida externa, esse milhão de assinaturas contra corrupção eleitoral, o movimento dos sem-terra, as próprias pastorais sociais na Igreja. Há mais consciência, mais mobilização e mais organização.



O que o senhor diria sobre a participação popular nas eleições?

Casaldáliga - Votar limpo, não vender o voto. Segundo lugar, participar, participar e participar, tanto na luta popular, cidadania, grupos de rua, de bairros e dentro de casa, participe. Em terceiro, saber que a maioria e os pobres têm a última palavra. A última palavra não é somente dos pobres pelo fato de serem maioria. É que, por último, essa é a opção de Deus: eu acredito no Deus da vida, que é o Deus dos pobres.



Como anda a sua luta no Araguaia, principalmente com relação à Prelazia?

Casaldáliga - Nós continuamos na luta de sempre, lá naquele nortinho, que, com freqüência, as autoridades e os meios de comunicação de Cuiabá esquecem. Só se lembram do nortão, que é mais produtivo, e esquecem do nortinho.



E a dívida externa?

Casaldáliga - O encerramento da dívida externa é problema difícil, mas não impossível de resolver. Para incentivar a sociedade, parodio o líder popular venezuelano Simón Bolívar, dizendo que as pessoas devem primeiramente fazer as coisas impossíveis, deixando para amanhã o que é difícil. A dívida externa figura como a maior dependência dos países do Terceiro Mundo em relação aos países desenvolvidos.<p>A dívida causa uma dependência visceral, constituindo um obstáculo de norte a sul. A manutenção do pagamento da dívida significa a maior guerra que já aconteceu na história da humanidade. Nenhuma guerra tem matado mais do que esta. Ela não é o holocausto de um povo só, mas de continentes inteiros. Dar continuidade ao processo de quitação da dívida implica deixar de pagar as dívidas sociais.



Qual seria a solução?

Casaldáliga - A forma de eliminar esse mal pela raiz seria a união política dos países subdesenvolvidos em torno desse propósito. Se México, Chile, Argentina e Brasil se unissem, os fornecedores externos baixariam a cabeça.<p>Os credores não cedem, porque nós, os países pobres, esquecemos a força que nós teríamos, se algum dia nos uníssemos.

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