quarta-feira, 11 de junho de 2014

20140611 André Comte-Sponville O Homem


O homem

André Comte-Sponville

 

 

O homem é uma coisa a sagrada para o homem (SÊNECA)

 

 

O que é um homem? Respostas é que não faltam na história da filosofia. É o homem um animal político, como queria Aristóteles? Um animal falante, como também ele dizia? Um animal de duas patas sem penas, como afirmava com graça Platão? Um animal razoável, como pensavam os estóicos depois os escolásticos? Um ser que ri (Rabelais), que pensa (Descartes), que julga (Kant), que trabalha (Marx), que cria (Bergson)?

 

Nenhuma dessas respostas, nem a soma delas, me parecem totalmente satisfatória. Primeiro porque são, quanto à extensão, possivelmente largas demais e certamente restritas demais. Uma boa definição deve valer para todo o definido, e somente para ele. Não é o caso destas, tão famosas, porém, que acabo de evocar. Imaginemos que se prove a existência, nos golfinhos ou em algum extraterrestre, de uma linguagem, de uma organização política, de um pensamento, de um trabalho, etc. Isso não faria do golfinho ou do extraterrestre um homem, como tampouco transformaria o homem em cetáceo ou marciano. E que dizer dos anjos e do seu riso possível?
 

Definições amplas demais, portanto, já que não valem apenas para o definido: um ser pode viver em sociedade, falar, pensar, julgar, rir, produzir seus meios de existência... sem por isso fazer parte da humanidade.

 
Mas as mesmas definições também são estreitas demais, já que não valem para todo o definido: o débil mental profundo não fala, não raciocina, não ri, não julga, não trabalha, não faz política... Nem por isso deixa de ser homem. Vive em sociedade? Também não, e talvez menos que alguns dos nossos animais domésticos. Quem, no entanto, admitiria que fosse tratado como um bicho, mesmo que como um bicho bem tratado? Quem iria querer pô-lo num zôo? Vão me dizer que às vezes fez-se bem pior, o que todos sabemos. Mas que filósofo julgaria isso aceitável?


Se o golfinho ou o extraterrestre, mesmo que sejam inteligentes, não são homens, e se o débil mental profundo é (como vocês devem ter compreendido, é principalmente este último ponto que importa), forçoso é concluir que nossas definições funcionais ou normativas não são corretas: um homem continua sendo homem mesmo quando cessa de funcionar normalmente. O que significa que nem as funções nem as normas poderiam valer como definição. A humanidade não se define pelo que faz ou sabe fazer. Pelo que é? Sem dúvida. Mas o que é ela? Nem a razão, nem a política, nem o riso, nem o trabalho, nem uma faculdade qualquer são característica distintiva do homem. O homem não tem característica distintiva, em todo caso nenhuma característica distintiva basta para defini-lo.

Foi o que Diderot compreendeu. No verbete ‘“Homem” da Enciclopédia, ele esboça uma definição:
 
“É um ser senciente, reflexivo, pensante, que passeia livremente pela superfície da terra, que parece estar à frente de todos os outros animais que ele domina, que vive em sociedade, que inventou ciências e artes, que tem uma bondade e uma maldade que lhe são próprias, que criou senhores para si, que fez leis para si, etc.”

 

Essa definição tem as mesmas qualidades e as mesmas fraquezas que aquelas de que partimos. Mas Diderot sabe disso. E o fim da sua definição dá como que um sorriso, que a ilumina e anula: “Esta palavra só tem significação precisa se nos lembrar tudo o que somos; mas o que somos não pode ser compreendido numa definição.”

 
Como falar dos direitos humanos, porém, se não se sabe de que - ou de quem - se fala? Faz-se necessário pelo menos um critério, um sinal distintivo, uma marca de pertinência, o que Aristóteles chamaria de uma diferença específica. Qual? A própria espécie, à qual pertencemos. Antes de mais nada, a humanidade não é um desempenho, que dependeria dos seus sucessos. Ela é um dado, que se reconhece até em seus fracassos.

 
Aqui precisamos voltar à biologia. Não para encontrar outras características definidoras, que seriam igualmente discutíveis: a posição ereta, o polegar oponível aos outros dedos, o peso do cérebro ou a interfecundidade também têm, no seio da humanidade, suas exceções. Se é necessário voltar à biologia, não é essencialmente para definir um conceito, mas para reatar com a experiência, que é a experiência da humanidade sexuada, da concepção, da gestação, do parto - dos corpos. Todos nascidos de uma mulher: todos gerados, e não criados. Tanto o débil mental quanto o gênio. Tanto o homem de bem quanto o crápula. Tanto o velho como a criança. E isso extraterrestre algum, anjo algum, jamais poderá pretender. A humanidade é antes de mais nada certa espécie animal. Seria um erro se o lamentássemos: não só por causa dos prazeres que isso nos proporciona, e que são vivos, mas porque seria lamentar a única coisa que nos permite existir. Somos mamíferos, lembra Edgar Morin, fazemos parte “da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie sapiens...”. Essa pertinência desemboca em outra definição mais genérica.

 
É a que forjei para meu uso pessoal e que sempre me bastou: é um ser humano todo ser nascido de dois seres humanos. Biologismo estrito, e precavido.

 
Fale ou não fale, pense ou não pense, seja ou não capaz de socialização, de criação ou de trabalho, todo ser que cabe nessa definição tem os mesmos direitos que nós (mesmo se, de fato, não os pode exercer), ou antes mas dá na mesma, temos os mesmos deveres para com ele. 

 
A humanidade é um fato antes de ser um valor, uma espécie antes de ser uma virtude. E, se pode vir a ser valor ou virtude (no sentido em que a humanidade é o contrário da desumanidade), é antes de tudo por fidelidade a esse fato e a essa espécie. “Cada homem traz a forma inteira da humana condição”, dizia Montaigne. Disso, nem o pior de nós escapa. Há homens desumanos à força de crueldade, de selvageria, de barbárie. Mas seria ser tão desumano quanto eles contestar sua pertinência à humanidade.

 
Nascemos homens tornamo-nos humanos. Mas quem não consegue se tornar, nem por isso deixa de ser homem. A humanidade é recebida, antes de ser criada ou criadora. Natural, antes de ser cultural. Não é uma essência, é uma filiação: homem, porque filho de homem.

 
Isso levanta a questão da clonagem, da eugenia, de uma eventual fabricação artificial do homem – ou do super-homem. E é, para mim, uma razão forte para rejeitá-las. Se a humanidade se define antes pela filiação que por sua essência, antes pela geração que pelo espírito, enfim, antes por nossos deveres em relação a ela que por suas funções ou desempenhos, há que fincar pé tanto nessa filiação, quanto nessa geração e nesses deveres. A humanidade não é um jogo; é o que está em jogo. Não é antes de tudo uma criação, mas uma transmissão. Não é uma invenção, mas uma fidelidade.

 

Não passa pela cabeça de ninguém condenar o fato de podermos utilizar os formidáveis progressos da genética para proporcionar a todo ser humano, na medida do possível, a plenitude da sua humanidade (é o que se chama de terapia gênica). Mas isso não é um motivo para querer transformar a própria humanidade, nem que seja para melhorá-la. A medicina combate as doenças; mas a humanidade não é uma doença, o que significa que não poderia depender legitimamente da medicina.

 
Superar o homem? Seria traí-lo ou perdê-lo. Todo ser tende a perseverar em seu ser, dizia Spinoza, e o ser de um homem é destruído tanto se ele se metamorfosear em anjo como em cavalo... Eugenia e barbárie coincidem.

 
Curar um indivíduo, sim, e nunca seria demais tentá-lo. Modificar a espécie humana, não. Sei que a fronteira entre as duas coisas, em se tratando das terapias gênicas, é tênue ou problemática. Mais um motivo para refletir sobre esse assunto, e para estar atentos. O homem não é Deus: só continuará plenamente humano se aceitar não ser nem a sua causa nem a sua ruína.

 

O fato de a humanidade ser antes de mais nada uma espécie animal levanta também, e sobretudo, a questão do humanismo. A palavra pode ser tomada em dois sentidos. Há um humanismo prático ou moral, que consiste simplesmente em atribuir certo valor à humanidade, em outras palavras, a impor a si certo número de deveres e de proibições em relação a todo ser humano. É o que hoje se chama de direitos humanos, ou antes, seu arraigamento filosófico: se os homens têm direitos, é antes de mais nada porque temos deveres, todos nós, uns para com os outros. Não matar, não
torturar, não oprimir, não subjugar, não estuprar, não roubar, não humilhar, não caluniar... Esse humanismo é uma moral antes de ser uma política, e é quase sempre a moral dos nossos contemporâneos.


Por que já não consideramos a masturbação ou a homossexualidade coisas condenáveis? Porque não fazem mal a ninguém. Por que continuamos a condenar, e mais que nunca, o estupro, o proxenetismo, a pedofilia? Porque esses comportamentos supõem ou acarretam a violência, a subjugação do outro, sua exploração, sua opressão, em suma, porque violam seus direitos, sua integridade, sua liberdade, sua dignidade... Isso esclarece o bastante o que a moral se tornou em nossas sociedades leigas. Não mais a submissão a uma proibição absoluta ou transcendente, mas a consideração dos interesses da humanidade, antes de mais nada do outro homem ou da outra mulher. Não mais um apêndice da religião, mas o essencial, cá estamos nós outra vez, do humanismo prático. Por que “prático”? Porque ele diz respeito mais à ação (praxis) que ao pensamento ou à contemplação (theoría). O que está em jogo não é o que sabemos ou cremos da humanidade, mas o que queremos para ela. Se o homem é sagrado para o homem, como já dizia Sêneca, não é porque seria Deus, nem porque um Deus assim ordena. É porque ele é homem, e isso basta.

 

Humanismo prático, portanto: o humanismo como moral. É agir humanamente, e pela humanidade.

 

Mas há outro humanismo, que podemos chamar de teórico ou transcendental. De que se trata? De certo pensamento, de certa crença, de certo conhecimento, ou que se pretende tal: é o que saberíamos, ou o que deveríamos crer, do homem e do seu valor, e que viria fundar nossos deveres em relação a ele... Esse humanismo tropeça no saber que ele próprio reivindica. Porque o que sabemos do homem é, antes de mais nada, que ele é capaz do pior, vejam Auschwitz, e com maior frequência é mais capaz do medíocre que do melhor. Depois, vejam Darwin, é que ele não escolheu ser o que é (que ele é mais resultado do que princípio). Enfim, é que ele não é Deus, já que tem um corpo (que o impede de ser onipotente, perfeito ou imortal), uma história, primeiro natural depois cultural, enfim uma sociedade e um inconsciente que o governam muito mais, infelizmente, do que ele os governa. É aí que as ciências humanas - vejam Freud, Marx, Durkheim... - aparecem para subverter a ideia que temos de nós mesmos: o anti-humanismo teórico deles, como dizia Althusser, nos veda crer no homem como críamos em Deus, em outras palavras, nos veda transformá-lo em fundamento do seu ser, dos seus pensamentos ou dos seus atos. “O objetivo final das ciências humanas”, escreve por exemplo Lévi-Strauss, “não é constituir o homem mas dissolvê-lo”, o que supõe que se reintegre “a cultura na natureza, e finalmente a vida no conjunto das suas condições físico-químicas”. O homem não é causa de si, nem essencialmente senhor de si, nem, menos ainda, transparente a si mesmo. Ele é o resultado de certa história, que o atravessa e o constitui sem que ele saiba. Ele só é o que faz porque é, antes de tudo, o que o faz (seu como, seu passado, sua educação...). Se o homem “é condenado a cada instante a inventar o homem”, como dizia Sartre, não o faz a partir de nada.


A humanidade não é uma página em branco, nem pura criação de si por si. É uma história, é um determinismo, ou vários, é uma aventura.

 

“O homem não é um império no império”, já dizia Spinoza: ele faz parte da natureza, cuja ordem ele segue (inclusive quando parece violá-la ou devastá-la), ele faz parte da história, que ele faz e que o faz, ele faz parte de uma sociedade, de uma época, de uma civilização... O fato de ele ser capaz do pior é fácil de explicar. É um animal que vai morrer, e que sabe que vai, que tem mais pulsões que instintos, mais paixões que razões, mais fantasmas que pensamentos, mais cóleras que luzes... Edgar Morin tem uma bela fórmula: “Homo sapiens, homo demens.” Tanta violência nele, tantos desejos, tantos medos!


Sempre temos razão de nos proteger dele, e é essa a única maneira de servi-lo.

 

“Deploro a sorte da humanidade”, escrevia La Mettrie, “de estar, por assim dizer, em mãos tão ruins como as dela.” Mas não há outras: nossa solidão também comanda nossos deveres. O que as ciências humanas nos ensinam sobre nós mesmos, e que é precioso, não poderia fazer as vezes de moral. O que sabemos do homem não diz nada, ou quase nada, sobre o que queremos que ele seja. O fato de o egoísmo, a violência ou a crueldade serem cientificamente explicáveis (por que não seriam, se são reais?) não nos ensina nada sobre seu valor. O amor, a doçura ou a compaixão também são explicáveis, pois que existem, e valem mais. Em nome de quê? Em nome de certa ideia do homem, como dizia Spinoza, que seja “como um modelo da natureza humana, posto diante dos nossos olhos”.
 

Conhecer não é julgar, e não exime de julgar. O anti-humanismo teórico das ciências humanas, longe de depreciar o humanismo prático, é o que lhe dá sua urgência e seu estatuto. Não é uma religião, é uma moral. Não é uma crença, é uma vontade. Não é uma teoria, é um combate. É o combate pelos direitos humanos, e o primeiro dever de cada um de nós.


A humanidade não é uma essência, que seria necessário contemplar, nem um absoluto, que seria necessário venerar, nem um Deus, que seria necessário adorar: ela é uma espécie, que é necessário preservar, uma história, que é necessário conhecer, um conjunto de indivíduos, que é necessário reconhecer, enfim um valor, que é necessário defender. Trata-se, dizia eu a propósito da moral, de não ser indigno do que a humanidade fez de si, e de nós. É o que chamo de fidelidade, que me importa mais do que a fé.
 

Crer no homem? Melhor é conhecê-lo tal como ele é, e desconfiar dele. Mas isso não nos exime de permanecer fiéis ao que os homens e as mulheres fizeram de melhor - a civilização, o espírito, a humanidade mesma -, ao que deles recebemos, ao que queremos transmitir, em suma, a certa ideia do homem, de fato, mas que deve menos ao conhecimento do que ao reconhecimento, menos às ciências do que às humanidades, como se dizia antigamente, enfim, menos à religião do que à moral e à história.

 
Humanismo prático, repitamos, muito mais que humanismo teórico: o único humanismo que vale é agir humanamente. O homem não é Deus. Cabe a nós fazer que seja pelo menos humano.

 
Montaigne, no fim da Apologia de Raymond Sebond, lembra-se de uma frase de Sêneca: “Que coisa vil e abjeta é o homem, se não se eleva acima da humanidade!” E acrescenta este comentário: “Eis aí uma boa palavra e um útil desejo, mas igualmente absurdo. Porque fazer o punhado maior que o punho, a braçada maior que o braço e esperar dar uma passada maior que a extensão das nossas pernas, é impossível e monstruoso. Nem que o homem suba acima de si e da humanidade.” Resta fazer que ele não desça abaixo, e isso nunca é garantido.

 
Humanismo sem ilusões, e de salvaguarda. O homem não morreu: nem como espécie, nem como ideia, nem como ideal. Mas é mortal; o que é mais uma razão para defendê-lo.

 

In: Comte-Sponville, André. Apresentação da filosofia.

São Paulo. Martins Fontes,2002. pg.125-133.

 

O autor nasceu em Paris, em 1952.

 É professor-doutor de filosofia da Universidade de Paris e escreveu dentre outros livros,

 “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”.

É colega de trabalhos de Salvatore Luc Ferry ou Luc Ferry simplesmente

 
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Paulo Cesar Fernandes

11 06 2014

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