quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

20131211 Alain Renaut_O indivíduo

Fichamento

Todo fichamento é uma visão particular e objetiva de uma obra. A mesma pessoa, visando dois trabalhos diferentes faria fichamentos distintos para cada uma das vertentes de pensamento a trabalhar.

Assim, esta é a minha leitura desta obra. Mas espero que seja útil a mais pessoas.

Paulo



Alain Renaut

O indivíduo: Reflexão acerca da filosofia do sujeito






Pags.: 14-17

3. Autonomia e subjetividade

Foi esse o caminho seguido por Heidegger, mediante sua desconstrução da filosofia moderna enquanto constituinte, de Descartes a Nietzsche, da “metafísica da subjetividade”. Sabe-se como essa soberania do sujeito desenvolveu-se supostamente em quatro grandes etapas e como foi atribuído papel decisivo à que, com Kant, encontrou sua tematização mais completa.


3.1.  Com Descartes emergiria a ideia de que a natureza não é permeada por forças invisíveis, sendo mera matéria-prima e
podendo, assim, ser perfeitamente dominada pela razão (tudo é suscetível de ser conhecido) e pela vontade (a totalidade do real é
utilizável pelo homem que visa a realização de seus fins): é uma concepção antropocêntrica do mundo, em que Heidegger situa
precisamente a própria essência do humanismo e para a qual se torna meio para a realização do homem.

3.2.  Com o advento do Iluminismo, parece consumar-se uma ruptura com a razão cartesiana: a ciência newtoniana refuta a
ideia de uma física a priori e parece impor à racionalidade científica o reconhecimento de seus limites. Contudo, a ciência continua a
apresentar-se como instrumento neutro, posto a serviço de fins que a ultrapassam e a partir dos quais ela encontra seu valor; quer se
trate de emancipação, quer de felicidade da humanidade.

3.3.  Admite-se que Kant, mais do que Heidegger, deu inicio a uma virada decisiva, sem deixar de reconhecer a importância e
as virtualidades do momento criticista, inscrito na lógica unidimensional da modernidade. É de fato com Kant que surge realmente a ideia de autonomia, mediante a crítica da moral da felicidade. Definida coo autonomia, a vontade moral, que é ao mesmo tempo agente e princípio (o valor supremo) da moralidade, nada quer além de si mesma enquanto liberdade que dita a lei à qual se submete. Pela primeira vez, aparece uma representação da vontade que se toma como objeto.

3.4.  A teoria nietzscheana da “vontade de poder” apenas radicalizaria o que surgira com Kant: o querer humano  cessa
inteiramente de se dirigir a um fim para se voltar para si mesmo e se tornar o que Heidegger denomina “vontade da vontade”, abrindo
caminho para a busca do poder pelo poder ou do poder enquanto tal. A universalização dessa derradeira representação do
humanismo moderno, com a qual se encerra o destino da ideia de autonomia, seria, assim, a técnica ou, se preferirmos, essa razão
puramente instrumental que já não questiona os fins e faz da vontade (ou do poder) um fim em si.


O sentido de tal desconstrução é claro: a razão de Descartes e do Iluminismo teria apenas conduzido de forma lógica, por meio de
um movimento de simples radicalização, a essa vontade de vontade, na qual a afirmação moderna do homem enquanto sujeito
(fundamento) encontraria sua realização mais perfeita; nesse sentido, a explicação kantiana do princípio de autonomia viria
simplesmente inscrever-se no seio de um percurso único e fatal, que termina com o triunfal desenvolvimento de uma tecnociência
preocupada exclusivamente com o aumento contínuo de seu poder, independentemente do preço a ser pago. Seria, então, necessário
convir que a própria essência do moderno, tal como expressa pela vocação do sujeito à autonomia, estaria em jogo até nas formas
mais aberrantes da tecnicização do mundo: longe de se poder lançar, nessas condições, uma representação da modernidade contra
outra, tudo conduziria  ao sacrifício global da modernidade e de seus valores, a começar por esse valor de autonomia, que melhor
lhe exprime a essência.


Será realmente necessário frisar que as consequências políticas de tal sacrifício parecem ameaçadoras, especialmente em função dos
estreitos laços entre autodeterminação e democracia? Segundo a lógica dessa homogeneização da modernidade, a Introdução à
metafísica, fruto de um curso ministrado por Heidegger em 1935, enfatiza a “decadência espiritual da Terra”, tal qual se manifesta
por meio do império planetário da técnica. Ao evocar os conflitos entre Oriente e Ocidente, Heidegger descreve nestes termos o
dilema em que a Europa se encontra: “A Rússia e a América são ambas, do ponto de vista metafísico, a mesma coisa; apresentam o
mesmo sinistro frenesi de técnica desenfreada e de organização inconsequente do homem normatizado.”

I. Irrupção do indivíduo


A dinâmica da sociedade democrática


Pag. 26

Sabe-se que, segundo Tocqueville, são duas as características principais desse individualismo moderno, cuja forma de expressão
política mais marcante ele parece ter encontrado na Revolução Francesa. O individualismo traduz-se em primeiro lugar pela revolta dos indivíduos contra a hierarquia em nome da igualdade.


2. Liberdade versus tradição


Pag. 28

Em seu trabalho de antropologia comparada, Louis Dumont insistiu com rigor nesse ponto: as sociedades tradicionais,
independentemente de se tratar de sociedades primitivas ou da sociedade medieval, são caracterizadas pela heteronomia. É
necessário compreender que, nessas sociedades, a tradição se impõe ao indivíduo sem ter sido por ele escolhida e nem,
consequentemente, ter sido fundada em sua própria vontade. É-lhe imposta de fora, sob forma de transcendência radical à qual os
homens obedecem como obedecem às leis da natureza. Isso faz com que a existência das pessoas esteja constantemente situada sob
a dependência dessa tradição.



Pag. 29

Pode-se esboçar aqui uma observação paralela ao raciocínio precedente: da mesma maneira como a Revolução não aboliu a
hierarquia, e mesmo engendrou outros tipos de (os da “sociedade burguesa”), a abolição desse universo tradicional que era o Ancien
Régime não deveria conduzir à abolição imediata, instantânea, de toda e qualquer forma de tradição. Ao contrário, a decomposição
das tradições deve ser entendida em correspondência a uma lógica progressiva (que a imagem da “erosão” sugere) das sociedades
democráticas. A análise dos movimentos sociais em termos de individualismo (compreendido, nesse segundo aspecto, enquanto
erradicação emancipatória das tradições) poderá, assim, continuar legitimamente até as sociedades contemporâneas, nas quais os
diversos movimentos de vanguarda, tanto no plano político como no da estética, se filiarão a essa tendência de criticar qualquer
conteúdo preconcebido e herdado em nome da liberdade dos indivíduos, em nome de sua criatividade ou de seu pleno
desenvolvimento. É mister acrescentar, ainda, que é precisamente esse segundo componente do individualismo que fornece às
sociedades modernas um de seus traços mais específicos, que consiste na contínua dissolução das referências oriundas do passado
e “transmitidas” de geração em geração; estas referências, cuja transmissão constitui a tradição, são, por definição, indefinidamente corroídas em função direta do projeto que anima o indivíduo moderno a apropriar-se das normas em vez de recebê-las. Dissolução contínua dos referenciais herdados que significa, por outro lado, a permanente revolução dessas referências.


Seguramente, é possível considerar com tranquilidade esses temas (igualdade versus hierarquia, liberdade versus tradição) como
aceitável caracterização da “era democrática” e, mais especificamente, do nosso mundo atual em sua dimensão de modernidade. O indivíduo nele se afirma simultaneamente como valor e princípio:


• enquanto valor, na medida em que, na lógica da igualdade, um homem vale outro, fazendo com que a universalização do
direito de voto seja a tradução política mais completa de tal valor;

• enquanto princípio, na medida em que, na lógica da liberdade, apenas o homem pode ser por si mesmo a fonte de suas
normas e leis, fazendo com que, contra a heteronomia da tradição, a normatividade ética, jurídica e política dos modernos se filie ao
regime de autonomia.


1. A cultura do indivíduo: Gilles Lipovetsky


Pags.: 45-46

Na medida em que a relação com a moda parece ser excessivamente arbitrária para permitir decisão, ela mesma suscita a tentação, para poder compreendê-la, de supor que, para além da liberdade aparente das escolhas, tudo obedece a mecanismos pré-reflexivos nos quais se expressariam as lógicas dissimuladas aos atores. Isso faz com que em geral os fenômenos da moda tenham sido analisados de acordo com esquemas que se referiam a condicionamentos inconscientes ou a uma orquestração subterrânea por parte dos imperativos do consumo, ao poder supostamente diabólico da publicidade e às leis da rivalidade social entre grupos
concorrentes, que buscam “se distinguir” uns aos outros. Todas essas variações giram em torno de um tema bem conhecido, que é
o da dominação do indivíduo pela sociedade: variações mais ou menos sutis, mas cuja tonalidade global é explicada, no fundo, por
essa natureza específica dos fenômenos de moda, fazendo com que a inteligibilidade do processo (inteligibilidade essa que deve ser
postulada por quem tente teorizá-lo) pareça só poder se encontrada na forma da hipótese segundo a qual haveria uma lógica imanente dos fenômenos socioculturais, lógica velada aos atores, sendo estes últimos movidos apenas pelas pressões inconscientes a que estariam submetidos pelo “mercado”, pela “sociedade de consumo”, pelos “Imperativos da produção”, etc. Enfim, é
compreensível que a moda tenha sido mais frequentemente explorada em termos de teorias da alienação – até mesmo na sociologia de Pierre Bourdieu, na qual a dinâmica da moda se configura nas lutas de concorrência entre parcelas da classe dominante desejosas de distinguirem-se umas das outras.


Pag.: 47

Lipovetsky empreendeu a completa reconstrução do que tem sido, desde o surgimento da modernidade, a trajetória do dispositivo: a
dinâmica da moda, inicialmente reservada aos meios aristocráticos, estendeu-se ao conjunto da sociedade por volta de 1880, com o
nascimento simultâneo da “alta costura” e da “confecção”, que lhe reproduz os modelos em grande escala; então, esse sistema se
decompôs, em torno de 1960, para dar lugar ao que conhecemos hoje, em que se trata mais de “parecer jovem” do que “mostrar
classe”,, de cultivar as “pequenas diferenças” concebidas menos como afirmação de um distanciamento social e mais como a
expressão de uma singularidade ou individualidade.


3. A barbárie individualista: Alain Finkielkraut

Pags.: 52-53

Toda uma corrente filosófico-literária, na qual encontramos A. Finkielkraut, E. de Fontenay ou romancistas como M. Kundera ou D. Sallenave, reagrupados em torno da revista Le Messager européen, estimou que a posição neotocquevileana é testemunha de um pensamento “colaborador”, que não quer ou não sabe perceber que as sociedades democráticas possuem taras próprias e que seu
individualismo produz novas formas de desumanidade e, mesmo de “barbárie”, tanto mais temíveis porque insidiosas e mascaradas
sob forma de um processo de emancipação da individualidade.


Pags.: 53-54

Foi, sobretudo A. Finkielkraut quem, seguindo o impulso de La Défaite de La pensée, encarnou na mídia essa condenação da
apologia neotocquevileana do individualismo.



5. Uma ética do indivíduo?


Pag.: 67

Até o Iluminismo, teria prevalecido a sujeição da moral à religião, centrada numa prática de virtude cujo motivo principal não era o
respeito ao homem, mas a submissão à vontade de Deus.
De 1700 a 1950, aproximadamente, surgiria a primeira onda da moderna ética laica que, a despeito de emancipar a moral de qualquer fundamento teológico, conservaria a noção de “dever absoluto” da fase religiosa: trata-se da era transitória da ética, que seria simbolizada por Kant e seu apelo ao sacrifício de todas as exigências individuais.


Por fim, essa segunda fase, heroica (porque fundada nos valores do sacrifício) e austera, valorizando a abnegação de si e o puro
desinteresse, teria sido concluída sob nossos olhos, mediante a reconciliação dos valores com o prazer e o self-interest. Em vez da
obrigação, interviria, a partir daí, o encantamento da felicidade: em suma, trata-se de uma ética sem mutilação do ser, apelando
menos ao espírito de sacrifício e mais ao sentido de responsabilidade, repousando, sobretudo, no reconhecimento recíproco dos direitos individuais.



Pags.: 70-72

Assim, quando Lipovetsky evoca a ultrapassagem da era do dever (e do sacrifício da individualidade) em direção a uma nova era,
que reconcilie ética e interesse, moral e indivíduo, seu diagnóstico me parece duvidoso – no fundo, por três motivos que bem
ilustram as insuficiências da perspectiva neotocquevileana:


• Longe de ser heterônoma, a moral do dever, que é intrinsecamente moderna, é de fato aquela que melhor expressa o princípio de auto-nomia de uma vontade que se submete, enquanto individualidade, à lei que ela mesma se atribuiu, por meio dessa parcela de humanidade comumpresente em cada um: a imprecisão conceitual possui aqui seu justo preço.
• Em relação a essa ética da autonomia, que é a do dever, pode-se perguntar seriamente se a ética do interesse no qual Lipovetsky enxerga o futuro da consciência moral, não representaria, ao contrário, seu passado: creio que, nesse aspecto (que evidentemente é decisivo), seja mister contestar radicalmente a periodização proposta. Lipovetsky resume a ética do interesse (ou do indivíduo) com seguinte princípio: “Liberdades privadas, ordem pública” (é perseguindo seu interesse que, na lógica pertencente à ética dos negócios, a firma Perrier contribui ao bem comum ao impor a seu produto critérios de pureza superior). Ora, esse princípio não é retomado com alusão a Mandeville (de acordo com a fórmula da Fable dês abeilles  [Fábula das abelhas]: “vícios privados, virtudes públicas”) por efeito de puro e feliz (ou infeliz) acaso, já que o modelo apresentado por Lipovetsky evoca evidentemente os precursores do liberalismo que, no século 18 e antes do pleno surgimento da moral do dever tematizada por Kant, haviam acreditado poder transformar o interesse de cada um no único impulsionador do bem de todos. Em suma, é a ética do dever
que veio retificar a ética da independência, e não ao contrário. Portanto, a periodização é falsa – fato que constituiria apenas uma
imprecisão histórica, como qualquer outra, caso o erro não denotasse, mais uma vez, confusão entre autonomia e independência.

• O que dizer, por fim, sobre a espantosa e persistente confusão entre autonomia e cuidado de si, já entrevista em benefício
das duas objeções precedentes, que serve de base a esse discurso para a pseudomoral do interesse? Não basta que a consideração
do interesse particular faça prova de inteligência para que se abra, aos Modernos, a esfera da autonomia e, portanto, da moralidade.
Entre a lógica do interesse bem compreendido e o desinteresse persiste um abismo, que separa toda forma de individualismo (ainda que inteligente) do verdadeiro humanismo: temo que suprimir essa distância ou não a perceber seja, na realidade, indicador de um fechamento singular e definitivo ao mais profundo enigma da moral, como ao da modernidade.


III. O fundamento filosófico do individualismo

A época das monadologias

1. O modelo monadológico


Pags.: 77-78

A principal tese de Leibniz é conhecida: não existem senão “mônadas”, realidades individuais ou individuadas independentes umas das outras, que “não possuem janelas por onde alguma coisa possa nelas entrar ou delas sair”. A proclamação desse fechamento em si, inerente à unidade monádica, obedece a uma lógica interna da filosofia de Leibniz. Em compensação, me parece indispensável
observar a maneira como daí resulta decisiva consequência para o destino da ideia de subjetividade.


A ideia de subjetividade não possui outro sentido além dessa convicção, solidária aos valores do humanismo moderno, de acordo
com a qual a humanidade do homem é definida pelo poder de ser ele mesmo o fundamento de seus atos e de suas representações.
Foi o reconhecimento desse poder propriamente humano de autofundação (e a valorização correlata da autonomia) que convidou a modernidade filosófica a pensar na fundação humana da verdade, da lei ou da história.



Pags.: 79-80

Essa leitura, que foi a de Heidegger, é, porém, profundamente inexata. Para se convencer de tal fato, basta examinar o estatuto da
ordem que rege as relações intermonádicas. Tal ordem do real (que, em Liebniz, as exigências tanto da fé como da razão impõem
postular) não pode ser auto-instituida por quaisquer sujeitos fundando em comum os limites que eles impõem reciprocamente, na medida em que a própria ideia de causalidade horizontal entre mônadas desprovidas de “janelas” é logo excluída pelo modelo
monadológico. Em outros termos, a independência ontológica que reina entre as mônadas criadas proíbe conceber que a menor
ordem seja introduzida no real por imposição humana de regras limitando a espontaneidade dos indivíduos (por exemplo, sob a
forma de direito). Consequentemente, o verdadeiro fundamento da ordem do real não pode ser encontrado senão na única causalidade vertical de Deus, que preestabelece harmonia entre as espontaneidades das mônadas: as individualidades monádicas são,
assim e no máximo, substratos de uma ordem nelas inscrita, para toda eternidade, por meio das fórmulas que as programam.


Pag.: 81

Definição de liberdade como independência, valorização da auto-suficiência, decomposição da comunicação intersubjetiva em
benefício da afirmação das individualidades como constituindo “mundos à parte”: a monadologia leibniziana, ao mesmo tempo em
que realiza uma verdadeira dissolução do sujeito tal como Descartes erigira (autofundação, autodeterminação), marca o nascimento filosófico do individualismo. O que surge a partir desse momento inaugural continuará a se desenvolver, a ponto de carregar todas as suas consequências. Mas, desde então, foi com Leibniz que nasceu o próprio princípio que legitima o individualismo no sentido ético: é por meio do fechamento em si e do fato de se ocupar apenas de si mesmo, pela cultura de sua independência e a submissão à lei de sua natureza que cada indivíduo contribui para manifestar a harmonia do universo.


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Só posso concluir que a construção de nossa Liberdade crescente nos levará a uma melhor compreensão das Leis da Natureza. Natureza ecológica e Natureza do Ser, indivíduo ou espírito.

Paulo Cesar Fernandes

11 12  2013

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