domingo, 25 de novembro de 2012

Mais de Sarmiento


Mais de Domingo Faustino Sarmiento


Fonte: http://escritaesociedade.wordpress.com/aula-12-sarmiento/

Sarmiento: letrado-mor?
 
Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) foi um personagem central da história política e intelectual argentina. Ferrenho opositor do caudilhismo e fervoroso defensor da educação como instrumento de europeização da América Latina, foi um dos principais expoentes da chamada Geração de 1837 – grupo intelectual de grande influência na Argentina do século XIX. A influência não foi meramente teórica: Sarmiento, cuja imensa careca habita até hoje as notas de 50 pesos, foi também o nono presidente da Argentina.
 

Rosas e Facundo
Facundo: mau, mau, mau
 
Quem foi Facundo Quiroga? Conhecido como “tigre”, foi um soldado brilhante e samguinário que lutou pela independência e participou dos numerosos conflitos internos que atormentaram os primeiros anos da Argentina. Influente nas províncias de San Juan, Tucumán e La Rioja (no Noroeste argentino), era conhecido pelos feitos militares, pelo fisiologismo e pela truculência. (Em 1919, por exemplo, foi preso por brigar com outro soldado. Em cana, encontrou vários oficiais leais à Coroa espanhola que planejavam uma rebelião. E, sozinho, usou as correntes que o atavam para chaciná-los. O episódio veio a ser conhecido como La matanza de San Luis).
Rosas: caudilho ditador
 
Mas Quiroga estava morto há dez anos quando Sarmiento decidiu evocar seu espírito no Facundo. Então, por que Sarmiento fala do caudilho? Porque percebe nele um antecessor do ditador Rosas – a quem Quiroga era aliado quando foi assassinado, em 1835. (Para quem precisa de um contexto visual para digerir essa discussão toda, dá para ver uma representação bacana da Era Rosas no filme Camila (1984), uma tragédia de amor dirigida por María Luisa Bemberg.)
Mas quais as divergências entre Sarmiento e Rosas? Basicamente, duas. A primeira é que Sarmiento era um unitarista: defendia um governo central mais forte. Já Rosas (como Quiroga) defendia um sistema federado de províncias relativamente autônomas. A segunda é que, como unitarista, Sarmiento estava alinhado ao projeto urbano dos letrados de Buenos Aires. Já Rosas (como Quiroga) tinha como base negros, camponeses e gaúchos de um interior pecuário que – empobrecido com a liberação do comércio pela Coroa, em 1778 – começara a recuperar seu vigor econômico nos primeiros anos da independência.
De fato, o livro inteiro desenvolve a oposição entre a capital, vista como força civilizadora, e os llanos e bosques gaúchos, retratados como bastiões do atraso e da barbárie. Mesmo assim, outras oposições operam no texto – que retrata a Argentina como um campo de batalha entre a escrita urbana e a fala rural, o comerciante letrado e o gaúcho ignorante, a cultura européia e a cultura nativa.
Recepção
Por pelo menos cem anos, Sarmiento foi percebido como uma força modernizadora e liberalizante na Argentina. Não é por menos. Iniciados em outubro de 1868, os seis anos de seu governo foram marcada por investimentos maciços em educação: construiu escolas e bibliotecas. Apostando na europeização étnica e cultural de seu país, também incentivou a imigração de europeus.
Há 30 anos, entretanto, essa avaliação positiva vem sendo revista. De uma parte, leituras recentes enfatizam a existência – sob o verniz liberal de Sarmiento – de valores patrimoniais e patriarcais consolidados ao longo de uma trajetória política, profissional e pessoal sempre ligada ao Estado e aos privilégios que ele oferece. Como todo bom letrado, Sarmiento atuou em muitas áreas. Foi soldado, educador, diplomata, chefe de repartição, deputado e presidente. Mas foi um liberal cuja carreira sempre esteve vinculada a Estado – seja o chileno ou o argentino.
Outro fator que tem levado à revisão do papel histórico de Sarmiento é a percepção do que pode ser descrito de forma ingênua como seu “elitismo eurocêntrico”. Não gosto da pecha. Pois nem “eurocentrismo” nem “elitismo” indicam valores que sejam perigosos ou problemáticos em si. Por isso, a pecha acaba ignorando o principal fantasma que assombra o pensamento de Sarmiento: que ele guarda em seu cerne preceitos de supremacia cultural que, além de autoritários, propõem a substituição de um código cultural adequado ao meio que descreve por um código importado e artificial.
Ou seja, o problema não é a defesa do europeu em si, mas o fato de que tal defesa se esforça mais em substituir uma cultura (e um vocabulário) própria por outra alheia do que em construir espaços de encontro e síntese cultural. Torna-se assim o principal baluarte de um projeto que visa a manter a hegemonia de uma classe letrada estatal. Entre outros sintomas desse problema, podemos citar:
O fato de que o projeto educacional de Sarmiento – sempre normativo – acaba traindo os próprios preceitos românticos europeus sob os quais se apóia. Isso porque substitui o pressuposto de que cada idioma expressa o espírito de um povo que, por sua vez, constitui uma nação por uma estranha mecânica na qual o Estado legisla a fala e o idioma na esperança de engendrar assim um povo capaz de constituir uma nação.
O fato de que tal projeto educacional, mais do que a democracia liberal, acaba defendendo a supremacia do urbano (e governamental) sobre uma cultura rural que – por sua própria posição periférica – é mais autóctone e independente.
Autoridade
Há nesse projeto uma contradição evidente. Apesar de reivindicar autoridade associando-se – ora de forma implícita, ora de forma explícita – ao romantismo europeu, Sarmiento defende valores opostos a esse romantismo, valores nos quais o espírito do povo argentino surge não do seu folclore, de suas crenças e de sua tradição oral, mas de valores importados pela escrita.
Esse ponto merece ênfase. Pois, se existe uma obsessão européia na primeira metade do século XIX, trata-se da obsessão de recuperar a fala do povo. Sob a influência de Herder, por exemplo, o romantismo alemão sai em busca da alma de seu povo nos campos e na oralidade. Enquanto isso, Sarmiento recorre à palavra “europeu” para legitimar um projeto urbano e escrito. Sob a influência dos Lyrical Ballads de Wordsworth e Coleridge, uma geração de escritores britânicos tenta descobrir “até que ponto a linguagem de conversação das classes baixas e médias de uma sociedade se adapta ao prazer poético”. Enquanto isso, Sarmiento associa o valor “Europa” à substituição da oralidade pela escrita.
Ou seja, o problema da pecha eurocêntrico” é que ela ignora o processo de apropriação, instrumentação e desvirtuamento pelo qual o letrado reivindica – por meio do artifício retórico “Europa” – a autoridade para defender valores que nada têm a ver com o pensamento europeu de sua época.
Por isso, vale prestar atenção a como Sarmiento constrói sua autoridade no texto. Curiosamente, a introdução do livro (incluída na seleção que vocês lerão) lamenta a falta de um Toqueville que fale sobre a Argentina. Ou seja, lamenta a falta de um europeu que explique ao país porque ele deu errado. Até aí, tudo bem. Mas não deixa de ser curioso como – na falta de um Europeu de sangue – Sarmiento acaba nomeando um europeu de alma… chamado Sarmiento.
Encontramos assim no Facundo uma versão um pouco menos inconsistente da dinâmica que vimos nas citações sem interpretação ou análise que tanto marcam o estilo de Mainardi. Perceber essa dinâmica é entender como o texto de Sarmiento constrói sua própria autoridade e legitimidade cultural. Como Mainardi, Sarmiento constrói-se como uma espécie de porte-parole de um discurso Europeu imaginário sobre a América Latina.
Três digressões
Como a escritura é a arte da digressão, segundo Severo Sarduy, eu diria que é bem antiga essa dinâmica na qual um indivíduo constrói sua autoridade apresentando-se como o único capaz de aplicar um conjunto de textos fundadores à insuficiência cultural que percebe em um determinado grupo social. No fundo, é uma dinâmica semelhante ao discurso dos pais da Igreja sobre o pecado original: seria por reconhecer como não podem escapar da universalidade desse pecado que autores como Agostinho teriam a autoridade para denunciar os mesmos.
Como a escritura é a arte da digressão dentro de uma digressão, acrescentaria que esse reconhecimento está no cerne de como Olavo de Carvalho constrói seu argumento em seu texto sobre o Mott: a sexualidade é sempre um problema, mas como eu reconheço que a minha poderia ser problemática posso descrever a do homossexual como fundamentalmente abjeta.
Como a digressão é um vício, reconheceria que também eu acabo construindo minha “autoridade” nos debates da disciplina por um instrumento semelhante de afirmação-pela-negação. Tem saída?
 

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