domingo, 8 de julho de 2012

A teoria estética de Herbert Marcuse

ARTE E LIBERTAÇÃO: A teoria estética de Herbert Marcuse

                                                       J Francisco Saraiva de Sousa


A TEORIA ESTÉTICA DE HERBERT MARCUSE

No seu ensaio Marxismo e o Crítico Literário, G. Steiner distingue duas correntes ou tendências na crítica marxista que, no fundo, reflectem dois tipos de estética, representados respectivamente por Engels e por Lenine. A primeira corrente deriva fundamentalmente de um escrito de Lenine, publicado em 1905, onde se defendia a literatura partidária: «A literatura deve tornar-se literatura do partido. (...) Abaixo os littérateurs não partidários! Abaixo os super-homens da literatura! a literatura deve tornar-se parte da causa geral do proletariado, "uma pequena roda e um pequeno parafuso" no mecanismo social-democrático, uno e indivisível – um mecanismo posto em movimento por toda a vanguarda consciente de toda a classe proletária. A literatura deve tornar-se parte integral das tarefas organizadas, metódicas e unificadas do partido social-democrático»[1]. Esta estética do partido foi codificada por Zhdanov no primeiro Congresso de Escritores Soviéticos, realizado em 1934. Concebida na luta contra o formalismo estético dos princípios do século XX, esta corrente, mais conhecida por literatura partidária (Tendenzliteratur), só atribui mérito às obras que exibem um partidarismo político manifesto e, por isso, culmina na ortodoxia estéril do realismo socialista, criticada severamente por Marcuse na sua obra O Marxismo Soviético.

A segunda corrente segue a orientação teórica de Engels, que avaliou a arte mais pela sua significação social objectiva do que pelas intenções políticas do seu criador, e integra nomes tão díspares entre si como, por exemplo, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty e Lucien Goldmann em França, Edmund Wilson e Sidney Finkelstein nos Estados Unidos, Georg Lukács na Hungria e os membros da «Escola de Frankfurt» na Alemanha.

Os teóricos críticos da Escola de Frankfurt que prestaram mais atenção à experiência estética são Walter Benjamin, Leo Löwenthal, Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno. As últimas obras dos dois últimos intitulam-se, respectivamente, A Dimensão Estética e Teoria Estética. Apesar das diferenças existentes entre estes pensadores, a estética frankfurtiana é uma estética da libertação e da emancipação.

A teoria estética de H. Marcuse é, numa primeira aproximação, uma impugnação da ortodoxia predominante na estética marxista. Contudo, esta impugnação da ortodoxia marxista não rompe com o materialismo histórico. Conforme sublinha Marcuse, a sua teoria estética, bem como a crítica que faz da ortodoxia marxista, «baseia-se na teoria marxista»[2].

A ortodoxia marxista interpreta a qualidade e a verdade de uma obra de arte «em termos da totalidade das relações de produção existentes»[3] e, de um modo mecanicista, considera que a obra de arte «representa os interesses e a visão do mundo de determinadas classes sociais de um modo mais ou menos preciso»[4]. Dado que não rompe com a teoria marxista, Marcuse «também encara a arte no contexto das relações sociais prevalecentes e atribui à arte uma função política e um potencial político»[5]. Mas, ao contrário dos estetas marxistas ortodoxos, o potencial político da arte reside «na própria arte, na forma estética em si»[6]. Assim, «em virtude da sua forma estética, a arte é absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes»[7]. Ao reclamar a autonomia da obra de arte, Marcuse rompe cabalmente com a ortodoxia predominante na estética marxista, substituindo-a por uma nova teoria crítica da arte. «Na sua autonomia, a arte não só contesta estas relações sociais existentes como, ao mesmo tempo, as transcende. Deste modo, a arte subverte a consciência dominante, a experiência ordinária»[8].

1. CRÍTICA DA ESTÉTICA MARXISTA ORTODOXA

H. Marcuse resume a estética marxista ortodoxa em seis teses fundamentais:

«1. Existe uma relação definida entre a arte e a base material, entre a arte e a totalidade das relações de produção. Com a modificação das relações de produção, a própria arte transforma-se como parte da superstrutura, embora, tal como outras ideologias, possa ficar para trás ou antecipar a mudança social.

«2. Há uma conexão definida entre arte e classe social. A única arte autêntica, verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão, que exprime a tomada de consciência desta classe.

«3. Consequentemente, o político e o estético, o conteúdo revolucionário e a qualidade artística tendem a coincidir.

«4. O escritor tem a obrigação de articular e exprimir os interesses e as necessidades da classe em ascensão. (No capitalismo, esta seria o proletariado.)

«5. A classe declinante ou os seus representantes só podem produzir uma arte "decadente".

«6. O realismo (em vários sentidos) é considerado a forma de arte que corresponde mais convenientemente às relações sociais, constituindo assim a forma de arte "correcta"»[9].

Conforme observa Marcuse, «cada uma destas teses implica que as relações sociais de produção devem estar representadas na obra literária – não impostas exteriormente à obra, mas fazendo parte da sua lógica interna e da lógica do material»[10]. Este princípio metodológico da estética marxista ortodoxa deriva da sua concepção mecanicista e não dialéctica das relações entre a infra-estrutura económica e a super-estrutura jurídico-política e ideológica de uma sociedade. Com efeito, a interpretação economicista e mecanicista da teoria marxista implica necessariamente «uma noção normativa da base material como a verdadeira realidade e uma desvalorização política de forças não materiais, particularmente da consciência individual, do subconsciente e da sua função política»[11]. Esta função política tanto pode ser regressiva como emancipatória, mas, em qualquer um dos casos, pode tornar-se uma força material. Anular esta possibilidade é o mesmo que negligenciar o carácter subversivo da arte. É, por isso, que Marcuse submete a estética marxista ortodoxa a um reexame crítico.

A interpretação economicista do materialismo histórico teve consequências devastadoras para a estética, sendo a mais importante a depreciação de todo o mundo da subjectividade, não só do sujeito racional, mas também da interioridade, das emoções e da imaginação. Ao dissolver a subjectividade dos indivíduos, a sua própria consciência e inconsciência, na consciência de classe, a estética marxista ortodoxa minimizou, nas palavras de Marcuse, «um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente o facto de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjectividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objectivos»[12]. Deste modo, continua Marcuse, «a teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e combateu na sociedade como um todo. A subjectividade tornou-se um átomo da objectividade; mesmo na sua forma rebelde submeteu-se a uma consciência colectiva. A componente determinista da teoria marxista não reside no seu conceito de relação entre existência social e consciência, mas no conceito reducionista de consciência que põe entre parênteses o conteúdo específico da consciência individual e, com ele, o potencial subjectivo para a revolução»[13].

Marcuse considera que o materialismo histórico deve dar conta do papel da subjectividade, se não quiser adquirir a aparência do materialismo vulgar. A sua teoria estética opõe-se à reificação do materialismo economicista, na medida em que afirma claramente o papel fundamental da subjectividade rebelde na mudança social radical. «Com a afirmação da interioridade da subjectividade, o indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos valores de troca, retira-se da realidade da sociedade burguesa e entra noutra dimensão de existência»[14]. Esta evasão da realidade invalidou os principais valores burgueses. O foco da realização individual é desviado do domínio do princípio de realização e do motivo do lucro para o domínio dos recursos íntimos do ser humano – a paixão, a imaginação, a consciência. No entanto, esta evasão não foi definitiva. «A subjectividade lutou por sair da sua interioridade para a cultura material e intelectual»[15]e, no actual período totalitarista da sociedade administrada, tornou-se «um valor político tentando contrabalançar a socialização agressiva e exploradora»[16].

A teoria estética de H. Marcuse é, portanto, uma teoria da libertação, que procura dar conta do potencial subjectivo para a revolução. Contra a reificação da estética marxista ortodoxa, Marcuse elabora uma nova estética para o marxismo, capaz de dar conta do potencial revolucionário da arte.

 

2. CONCEITOS ESTÉTICOS

A teoria clássica do reflexo é directamente visada e invalidada pela afirmação de que a arte transcende a realidade estabelecida. Marcuse é a este propósito peremptório:

«As qualidades radicais da arte, ou seja, a sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem (schoner Schein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas (do amor e da morte, da culpa e do fracasso, mas também da alegria, da felicidade e da realização) que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais dominantes»[17].

Ao transcender a realidade estabelecida, a arte cria um mundo próprio que se opõe à realidade existente, em nome de uma racionalidade e sensibilidade que se realizam apenas na sua forma.

«Sob a lei da forma estética, a realidade existente é necessariamente sublimada: o conteúdo imediato é estilizado, os «dados» são reformulados e reordenados de acordo com as exigências da forma de arte, a qual requer que mesmo a representação da morte e da destruição invoque a necessidade de esperança – uma necessidade fundamentada na nova consciência personificada na obra de arte.

«A sublimação estética dirige-se à componente afirmativa, reconciliadora da arte, embora seja ao mesmo tempo um veículo da função crítica, negadora, da arte. A transcendência da realidade imediata destrói a objectividade reificada das relações sociais estabelecidas e abre uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjectividade rebelde. Assim, na base da sublimação estética, tem lugar uma dessublimação na percepção dos indivíduos – nos seus sentimentos, juízos, pensamentos; uma invalidação das normas, necessidades e valores dominantes. Com todas as suas características afirmativo-ideológicas, a arte permanece uma força dissidente»[18].

Contra a estética marxista do conteúdo, Marcuse afirma que o potencial político da arte reside na forma estética. Apesar deste destaque privilegiado concedido à forma estética, a teoria crítica da arte não se deixa reduzir a uma mera estética da forma. Marcuse define a forma estética como «o resultado da transformação de um dado conteúdo (facto actual ou histórico, pessoal ou social) num todo independente: um poema, peça, romance, etc.»[19].

«A obra é assim «extraída» do processo constante da realidade e assume um significado e uma verdade autónoma. A transformação estética é conseguida através de uma remodelação da linguagem, da percepção e da compreensão, de modo a revelarem a essência da realidade na sua aparência: as potencialidades reprimidas do homem e da natureza. A obra de arte re-presenta assim a realidade, ao mesmo tempo que a denuncia.

«A função crítica da arte, a sua contribuição para a luta de libertação, reside na forma estética. Uma obra de arte é autêntica ou verdadeira não pelo seu conteúdo (isto é, a representação «correcta» das condições sociais), não pela «pureza» da sua forma, mas pelo conteúdo tornado forma

«É verdade que a forma estética desvia a arte da realidade da luta de classes – da realidade pura e simples. A forma estética constitui a autonomia da arte relativamente ao «dado». No entanto, esta dissociação não produz uma «falsa consciência» ou mera ilusão, mas antes uma contra-consciência: a negação do pensamento realístico-conformista»[20].

Na teoria estética de H. Marcuse, «forma estética, autonomia e verdade encontram-se interligadas»[21]. O sentido de cada um destes conceitos só pode ser compreendido a partir das relações que estabelecem entre si no quadro de uma estética da libertação. A obra de arte extraí o seu conteúdo e os seus materiais da realidade existente, ao mesmo tempo que o transforma num todo independente. A forma estética é o resultado desta transformação, que, através da remodelação da linguagem, da percepção e da compreensão, revela a essência da realidade existente na sua aparência – a negatividade da sociedade estabelecida. O seu potencial político manifesta-se precisamente no seu conteúdo tornado forma estética. Ao re-presentar a realidade, a arte denuncia-a. A obra de arte é negação da realidade existente e, nesta negação, afirma a sua autonomia em relação aos «dados» e às relações sociais da sociedade estabelecida. Na sua autonomia, a arte não só contesta a veracidade das relações sociais prevalecentes, como também as transcende, abrindo-se a uma nova dimensão da experiência e da realidade: a sociedade livre e plenamente justa.

A forma estética, a autonomia e a verdade da arte são, sem dúvida, fenómenos socio-históricos, capazes de transcender a arena socio-histórica em que se manifestam. Esta contextualização social e histórica da arte limita a sua autonomia, mas não invalida as verdades trans-históricas expressas na obra de arte.

«A verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (isto é, dos que a estabeleceram) para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade»[22].

Contudo, o mundo fictício da arte só pode ser representado numa forma alienante.

«A arte empenha-se na percepção do mundo que aliena os indivíduos da sua existência e actuação funcionais na sociedade – está comprometida numa emancipação da sensibilidade, da imaginação e da razão em todas as esferas da subjectividade e da objectividade. A transformação estética torna-se um veículo de reconhecimento e acusação. Mas, essa realização pressupõe um grau de autonomia que desvia a arte do poder mistificador do dado concreto e a liberta da sua própria verdade»[23].

A autonomia da arte consiste na sua capacidade de transcender os condicionamentos psicossociais, culturais e históricos da realidade existente e de apontar para uma outra realidade – a realidade liberta da reificação.

«Enquanto o homem e a natureza não existirem numa sociedade livre, as suas potencialidades reprimidas e distorcidas só podem ser representadas numa forma alienante. O mundo da arte é o de outro Princípio da Realidade, de alienação – e só como alienação é que a arte cumpre uma função cognitiva: comunica verdades não comunicáveis noutra linguagem; contradiz»[24].

Na arte, «as fortes tendências afirmativas para a reconciliação com a realidade estabelecida coexistem com as de rebelião»[25]. Mas, segundo Marcuse, estas tendências reconciliadoras «não se devem à determinação de classe específica da arte», como supõem os estetas marxistas ortodoxos, «mas antes ao carácter redentor da catarse»[26]. Na perspectiva de Marcuse, a catarse «baseia-se no poder que a forma estética tem de chamar o destino pelo seu nome, de desmistificar a sua força, de dar a palavra às vítimas – o poder de reconhecimento que proporciona ao indivíduo um pouco de liberdade e de realização no seio da servidão. A interconexão entre a afirmação e a denúncia do que existe, entre a ideologia e a verdade, pertence à verdadeira estrutura da arte. Mas, nas obras autênticas, a afirmação não exclui a denúncia: a reconciliação e a esperança preservam ainda a memória de coisas passadas»[27]. A outra origem do carácter afirmativo da arte reside no «empenhamento da arte no Eros, a afirmação profunda dos Instintos de Vida na sua luta contra a opressão instintiva e social. A permanência da arte, a sua imortalidade histórica ao longo dos milénios de destruição, dá testemunho deste empenhamento»[28].

 

3. AUTONOMIA E UNIVERSALIDADE DA ARTE

Marcuse define a autonomia da arte de um modo absolutamente dialéctico: «A arte submete-se à lei do dado concreto, ao mesmo tempo que o transgride»[29]. A dialéctica entre afirmação (ideologia) e denúncia do que existe (verdade) faz parte integrante da estrutura interna da obra de arte. Para Marcuse, a arte é uma força produtiva essencialmente autónoma e negadora. Este conceito marcuseano de arte contradiz frontalmente a concepção segundo a qual a arte desempenha uma função essencialmente dependente, afirmativo-ideológica de glorificação e absolvisão da sociedade existente. No reexame que realiza da estética marxista ortodoxa, Marcuse põe em discussão fundamentalmente a tese da determinação social e da classe da obra de arte. Desta discussão depende o seu conceito de autonomia da arte. Marcuse opõe-se ao conceito de arte de classe, que, na sua perspectiva, não corresponde ao pensamento genuíno de Marx e Engels.

«A reificação da estética marxista (...) minimizou a função cognitiva da arte como ideologia. Pois, o potencial radical da arte reside precisamente no seu carácter ideológico, na sua relação transcendente com a «base». A ideologia nem sempre é mera ideologia, falsa consciência. A consciência e a representação de verdades que aparecem como abstractas em relação ao processo de produção estabelecido também são funções ideológicas. A arte apresenta uma destas verdades. Como ideologia, opõe-se à sociedade existente. A autonomia da arte contém o imperativo categórico: «as coisas têm de mudar». Se a libertação dos seres humanos e da natureza tem de ser possível, então, o nexo social da destruição e da submissão deve ser rompido. Isto não significa que a revolução se torne temática; pelo contrário, nas obras esteticamente mais perfeitas, isso não acontece. Parece que, nessas obras, a necessidade da revolução é pressuposto como o a priori da arte. Mas, a revolução é como que também ultrapassada e questionada sobre até que ponto responde à angústia do ser humano, sobre até que ponto leva a cabo uma ruptura com o passado»[30].

A necessidade da mudança social qualitativa constitui o a priori da arte, que, apesar disso, não se priva de questinar o seu sentido. Este questionamento permanente deve-se ao facto da arte estar «impregnada de pessimismo, não raro entremeado com a comédia», que geralmente «não é contra-revolucionário»[31]. O pessimismo inerente à arte «serve para advertir contra a «consciência feliz» da práxis radical: como se tudo o que a arte invoca e denuncia pudesse resolver-se através da luta de classes»[32].

Ao reduzir a arte a um reflexo da estrutura das relações sociais de produção, a estética marxista ortodoxa não consegue responder às questões de saber se há qualidades da arte que transcendem as condições sociais específicas e de como estas qualidades estão relacionadas com as condições sociais específicas; às questões de saber quais as qualidades da arte que transcendem o conteúdo e a forma social específica e dão à arte a sua universalidade; enfim, às questões sobre se determinada obra de arte é boa, bela e verdadeira. Marcuse acentua que «as respostas a estas questões não podem ser novamente dadas em termos das relações específicas de produção que constituem o contexto histórico da respectiva obra»[33]. Segundo Marcuse, o método ortodoxo de abordagem destas questões é circular, tornando-se frequentemente «vítima de um fácil relativismo que é contrariado de maneira bastante clara pela permanência de certas qualidades da arte ao longo de todas as mudanças de estilo e de períodos históricos (transcendência, distanciamento, ordem estética, manifestações do belo)»[34].

Contra a estética do realismo socialista, Marcuse afirma: «O facto de uma obra representar verdadeiramente os interesses ou a visão do proletariado ou da burguesia não faz dela uma verdadeira obra de arte»[35]. Esta qualidade «material» não é constitutiva da obra de arte, na medida em que a sua universalidade não radica no mundo e na imagem do mundo de uma determinada classe social. «A arte visiona uma humanidade concreta, universal (Menschlichkeit), que não pode ser personificada por uma classe particular, nem mesmo pelo proletariado, a «classe universal» de Marx. O tecido inexorável de alegria e de tristeza, celebração e desespero, Eros e Thanatos, não podem dissolver-se em problemas de luta de classes»[36].

Assim, o potencial revolucionário da arte não reside no seu carácter revolucionário de classe, mas antes na emancipação social dos instintos da vida. Marcuse acusa o marxismo ortodoxo de negligenciar a estrutura instintiva dos indivíduos e o seu potencial revolucionário para a libertação social. «A emergência de seres humanos como «seres genéricos» – homens e mulheres capazes de viver nessa comunidade de liberdade que é o potencial da espécie – eis a baes subjectiva de uma sociedade sem classes. A sua realização pressupõe uma transformação radical dos impulsos e necessidades dos indivíduos: um desenvolvimento orgânico dentro do socio-histórico»[37]. A solidariedade deve mergulhar na estrutura instintiva dos indivíduos, da qual fazem parte os impulsos primários da energia libidinosa e destrutiva, mediante a subordinação das forças destrutivas às forças vitais. «A solidariedade e a comunidade têm a sua base na subordinação da energia destrutiva e agressiva à emancipação social dos instintos de vida»[38]. Segundo Marcuse, a revolução da estrutura instintiva é «um pré-requisito para uma mudança no sistema de necessidades, o sinal de uma sociedade socialista como qualitativa»[39]. Embora tenha estado divorciada da práxis radical, esta imagem «tem sido preservada no domínio da arte. Na forma estética, a autonomia da arte constitui-se a si própria. Foi imposta à arte através da separação do trabalho mental e material, como resultado das relações de poder prevalecentes»[40], possibilitando assim a denuncia da realidade estabelecida através da dominação.

A arte é autónoma em relação à sociedade estabelecida. Contudo, «a sociedade continua presente no mundo autónomo da arte»[41]. Esta presença manifesta-se de diversas maneiras, das quais Marcuse detaca três:

1. «como «matéria-prima» para a representação estética que, passada ou presente, se transforma nesta representação. Esta é a historicidade do material conceptual, linguístico e imaginável que a tradição transmite aos artistas e com a qual ou contra o qual têm de trabalhar»;

2. «como campo de possibilidades concretamente disponíveis de luta e libertação»;

3. «como a posição específica da arte na divisão social do trabalho, especialmente na separação do trabalho intelectual e manual, mediante a qual a actividade artística e, em grande medida, também a sua receptividade se tornam privilégio de uma «élite» afastada do processo material de produção»[42].

A presença da sociedade estabelecida na obra de arte limita objectivamente a sua autonomia, sem, no entanto, a anular.

«O carácter de classe da arte consiste apenas nestas limitações objectivas da sua autonomia. O facto de o artista pertencer a um grupo privilegiado não nega nem a verdade nem a qualidade estética da sua obra. O que é verdade para «os clássicos do socialismo» também é verdade para os grandes artistas: irrompem através das limitações de classe da sua família, das suas origens, do seu ambiente. A teoria marxista não é investigação da família. O carácter progressista da arte, a sua contribuição para a luta pela libertação, não se pode medir a partir das origens do artista nem pelo horizonte ideológico da sua classe. Tão pouco pode ser determinado pela presença (ou ausência) da classe oprimida nas suas obras. Os critérios do carácter progressista da arte são dados apenas na própria obra como um todo: no que diz e no modo como diz»[43].

Na sua crítica da interpretação psicanalista da arte, T. W. Adorno reafirma a autonomia da arte em relação ao psiquismo do artista: «A tese psicanalítica de que, por exemplo, a música seria o meio de defesa de uma paranoia ameaçadora, é talvez muito válida no plano clínico, mas nda diz sobre a categoria e o conteúdo de uma única composição estruturada»[44]. A teoria da sociedade e a teoria do psiquismo não dão conta da verdade da arte. A arte não é uma mera expressão ou um simples reflexo da sociedade e/ou do psiquismo do seu autor. O critério estético é imanente à própria obra de arte como um todo independente e autónomo. A teoria crítica da arte não é uma sociologia da arte e, muito menos, uma psicologia da arte. Trata-se simplesmente de uma filosofia da arte.

Contrariamente a Adorno, Marcuse considera que a tese da autonomia da arte confirma e valida a concepção da «arte pela arte». «Neste sentido, a arte é «arte pela arte», na medida em que a forma estética revela dimensões da realidade interditas e reprimidas: aspectos da libertação»[45]. Assim, a grande obra de arte, como por exemplo a poesia de Mallarmé, evoca uma «festa de sensualidade que destrói a experiência de todos os dias e antecipa um princípio de realidade diferente»[46]. Esta distância e afastamento da práxis constituem o valor emancipatório da arte. A literatura esotérica de Poe, Baudelaire, Proust e Valéry é «uma das formas históricas de transcendência estética crítica», porquanto desvenda «as zonas interditas da natureza e da sociedade em que mesmo a morte e o diabo se incluem como aliados na recusa de se submeterem à lei e à ordem de repressão»[47]. A natureza associal destas personagens constitui efectivamente uma rebelião subterrânea contra a ordem social estabelecida.

Marcuse, como de resto Adorno e Horkheimer, desconfia da cultura popular e, sobretudo, do «populismo artístico» defendido por W. Benjamin e B. Brecht:

«A arte não pode abolir a divisão social do trabalho que conduz ao seu carácter esotérico, mas a arte também não se pode «popularizar» sem atenuar o seu impacto emancipatório»[48].

A arte cria o seu próprio mundo, o qual não tem nada a ver com a realidade estabelecida. Com efeito, o mundo da arte é um mundo fictício que antecipa uma nova realidade livre da reificação da sociedade estabelecida. A arte é crítica e negativa: a sua verdade é a negação da ordem existente. Conforme escreve Marcuse: «A separação da arte do processo da produção material deu-lhe a possibilidade de desmistificar a realidade reproduzida neste processo. A arte desafia o monopólio da realidade estabelecida em determinar o que é «real» e fá-lo criando um mundo fictício que, no entanto, é «mais real que a própria realidade»»[49]. As qualidades não conformistas e autónomas da arte encontram-se na forma estética e, por isso, estão situadas fora da «arte empenhada» e do domínio da práxis e da produção. «A arte tem a sua própria linguagem e ilumina a realidade através desta outra linguagem»[50]. A dimensão de afirmação e negação da arte «não se pode coordenar com o processo social de produção»[51].

A estilização dos conteúdos sociais da arte, provenientes do processo social de produção, «revela em toda a objectividade o universal na situação social particular, o Sujeito sempre recorrente, desiderante. (...) O denominador social específico, «datado» numa obra de arte e ultrapassado pelo desenvolvimento social, é o milieu, a Lebenswelt dos protagonistas»[52]. Mas, nas obras de arte, este mundo da vida é sempre transcendido pelos protagonistas. «Esta transcendência ocorre na colisão com a sua Lebenswelt, através de acontecimentos que aparecem no contexto de condições sociais particulares, enquanto revela ao mesmo tempo forças não atribuíveis a essas condições específicas»[53]. Assim, por exemplo, «Humilhados e Ofendidos de Dostoievsky, Os Miseráveis de Victor Hugo sofrem não só a injustiça de uma determinada sociedade de classes, mas também a desumanidade de todas as épocas; representam a humanidade como tal. O universal que aparece no seu destino está para lá da sociedade de classes. De facto, esta é em si mesma parte de um mundo em que a natureza faz explodir a estrutura social. Eros e Thanatos afirmam o seu próprio poder dentro e contra a luta de classes. Evidentemente, a luta de classes nem sempre é «responsável» pelo facto de os «amantes não ficarem juntos». A convergência da realização e da morte preserva a sua verdadeira força, apesar de toda a exaltação romântica e de toda a explicação sociológica. O inexorável enredamento humano na natureza conserva a sua própria dinâmica nas relações sociais existentes e cria a sua própria dimensão metassocial»[54].

Como mostra Marcuse, a literatura burguesa racionaliza a dimensão metassocial, confrontando o indivíduo com a sociedade, mas este «conteúdo social permanece secundário em relação ao destino dos indivíduos»[55]. Na Comédie Humaine, Balzac retrata a sociedade do seu tempo (a dinâmica das finanças e do capitalismo empresarial), mas esta dinâmica social foi «absorvida» pela forma estética, que a transformou numa história de determinados indivíduos. É certo que eles são representantes da sua sociedade, mas, como adverte Marcuse, «a qualidade estética da Comédie Humaine e a sua verdade reside na individualização do social. Nesta transfiguração, o universal no destino dos indivíduos brilha através da sua condição específica»[56]. Na literatura, o que conta é o destino pessoal dos protagonistas, «não como participantes na luta de classes, mas como amantes, vilões, tolos, e assim por diante»[57]. Marcuse reserva o conceito de sublimação do conteúdo social para designar o processo de privatização do social, operado pela estilização do conteúdo social da obra de arte.

A estética marxista ortodoxa «condena a transformação dos conflitos sociais em destino pessoal, a abstracção da situação de classe, o carácter «elitista» dos problemas, a autonomia ilusória dos protagonistas»[58] Deste modo, «ignora o potencial crítico que se afirma precisamente na sublimação do conteúdo social. Dois mundos colidem, possuindo cada qual a sua própria verdade. A ficção cria a sua própria realidade que permanece válida mesmo quando negada pela realidade estabelecida. O bem e o mal dos indivíduos confronta-se com o bem e o mal social. Mesmo nas obras mais políticas, esta confrontação não é puramente política; ou antes, as confrontações sociais integram-se no jogo de forças metassociais entre um indivíduo e indivíduo, entre homem e mulher, entre a humanidade e a natureza. A mudança no modo de produção não alteraria esta dinâmica. Uma sociedade livre não podia «socializar» estas forças, embora pudesse emancipar os indivíduos da sua cega sujeição em relação às mesmas»[59].

Marcuse critica severamente a estética marxista ortodoxa, pondo em causa a sua tese mais dogmática:

«Em virtude das suas verdades trans-históricas, universais, a arte apela para uma consciência que não é apenas a de uma classe particular, mas a dos seres humanos enquanto «seres genéricos», desenvolvendo todas as suas faculdades de valorização da vida. Quem é o sujeito desta consciência?»[60].

A questão é puramente retórica, uma vez que a resposta já tinha sido dada anteriormente: os seres humanos enquanto seres genéricos. A sua colocação só se justifica pela possibilidade que oferece a Marcuse para desmistificar a «metafísica do proletariado».

«Para a estética marxista, este sujeito é o proletariado que, como classe particular, é a classe universal. A ênfase está no particular: o proletariado é a única classe na sociedade capitalista que não tem interesse pela preservação da sociedade existente. O proletariado é livre em relação aos valores desta sociedade e, por conseguinte, livre para a libertação de toda a humanidade. Segundo esta concepção, a consciência do proletariado seria também a consciência que valida a verdade da arte»[61].

Marcuse submete esta tese lukacsiana a uma dupla crítica. Por um lado, retoma a sua tese da integração social e cultural do proletariado sob o capitalismo monopolista avançado, desenvolvida sobretudo na sua obra O Homem Unidimensional: ensaio sobre a ideologia da sociedade industrial avançada[62], para mostrar que «esta teoria corresponde a uma situação que já não é (ou ainda não é) a que prevalece nos países capitalistas avançados»[63]. A integração social e cultural do proletariado na sociedade estabelecida é um facto consumado: a esperança social dos que lutam pela mudança social radical já não pode ser depositada na consciência e na práxis do proletariado. A teoria crítica da arte procura um novo agente social de mudança e encontra-o, pelo menos na estética de Marcuse no homem genérico. Por outro lado, Marcuse pensa que, «mesmo que o proletariado não estivesse integrado, a sua consciência de classe não seria a força principal ou a única que podia preservar e reconstituir a verdade da arte»[64]. Os dois argumentos que Marcuse opõe à teoria do proletariado como classe universal são de natureza diferente: o primeiro é um argumento empírico que refuta empiricamente essa teoria e o segundo é um argumento racional, mais precisamente metodológico, que é prioritário em relação ao primeiro. Esta prioridade metodológica reflecte uma certa desconfiança que os principais teóricos da Escola de Frankfurt sempre alimentaram em relação à teoria do proletariado e à esperança que o marxismo depositava na sua acção política. Apesar do fascínio exrecido por História e Consciência de Classe de G. Lukács[65] sobre estes teóricos, a teoria crítica da sociedade, mesmo quando foi elaborada em 1937 por M. Horkeimer[66], nunca confiou plenamente na vocação revolucionária do proletariado. Dos principais pensadores de Frankfurt, Marcuse foi, sem dúvida o mais ortodoxo; no entanto, na sua última obra – A Dimensão Estética, distancia-se completamente da teoria do proletariado, como o demonstra a prioridade metodológica mencionada:

«Se alguma arte «existe» para qualquer consciência colectiva, é a dos indivíduos unidos na sua consciência da necessidade universal de libertação – qualquer que seja a sua posição de classe. A dedicatória de Nietzsche no Zaratustra «Fur Alle und Keinen» (Para Todos e Ninguém) também se pode aplicar à verdade da arte»[67].

A consciência universal de libertação de Marcuse aproxima-se muito do conceito de solidariedade humana defendido por Horkheimer: ambos dirigem-se a todos os homens e não apenas ao proletariado. A libertação é uma tarefa humana que diz respeito a todos os indivíduos e não apenas aos indivíduos proletários enquanto membros de uma classe social.

Adivinha-se agora a razão que está por trás da recusa marcuseana da cultura popular. Aliando-se a Adorno e a Horkheimer contra as teses propostas por Benjamin e Brechet, Marcuse defende que, na sociedade capitalista avançada, só a «arte pop» e os «best-sellers» possuem uma base de massas. De resto, a arte verdadeira sempre esteve e continua a estar afastada das massas populares. A sua universalidade radical reside precisamente neste afastamento e distanciamento das estruturas sociais e económicas.

«Presentemente, o tema a que a verdadeira arte apela é socialmente anónimo; não coincide com o tema potencial da prática revolucionária. E quanto mais as classes exploradas, «o povo», sucumbem aos poderes existentes, tanto mais a arte se distanciará do «povo». A arte pode preservar a sua verdade, pode tornar consciente a necessidade de mudança, mas apenas quando obedece à sua própria lei contra a da realidade»[68].

 

4. ARTE E PRÁXIS POLÍTICA

Numa sociedade integrada e administrada, «a autonomia da arte afirma-se de uma forma extrema – como distanciamento intransigente»[69]. Nesta afirmação categórica, Marcuse afirma a autonomia da arte contra a sua heteronomia social defendida pela estética marxista ortodoxa. Desta tese decorre uma nova concepção das relações entre arte e política radical.

«A arte não pode mudar o mundo, mas pode contribuir para a mudança da consciência e impulsos dos homens e mulheres, que poderiam mudar o mundo»[70]. A estética marxista reificada insiste «no empenhamento da arte numa Weltanschauung proletária orientada para «o povo»»[71], sem se aperceber que o proletariado integrado «não está (compreensivelmente) muito interessado nestes problemas»[72] referentes à libertação. Para Marcuse, a tarefa de comprometer a arte com «o povo», como fazem Sartre[73] e Brechet, é absurda, porque, «se «o povo» é dominado pelo sistema prevalecente de necessidades, então, só a ruptura com este sistema pode transformar «o povo» num aliado contra o barbarismo. Antes de tal, o escritor não pode tomar simplesmente um «lugar entre o povo», que previamente lhe estava reservado. Os escritores devem, antes de mais, criar esse lugar, e isto é um processo que talvez exija que se oponham ao povo, que talvez os impeça de falar a sua linguagem. Neste sentido, hoje, a palavra «elitismo» pode bem ter um conteúdo radical. Trabalhar para a radicalização da consciência significa tornar o material explícito e consciente, bem como a discrepância ideológica entre o escritor e «o povo», em vez de a obscurecer e camuflar. A arte revolucionária pode realmente tornar-se «O Inimigo do Povo»»[74].

A arte possui a sua própria dimensão de transformação. A sua harmonização com a práxis radical não só anula esta dimensão, como também a converte no seu contrário – em dominação do mundo. Ora, o objectivo da arte, conforme frisa Marcuse, «não é o mundo dominado, mas o mundo libertado»[75]. Este objectivo só pode ser alcançado através da tensão entre a arte e a práxis radical. Ao anular esta tensão, a arte comprometida liquida a própria dimensão estética e, com ela, o seu potencial político.

De acordo com a concepção do «socialismo biológico» de Marcuse[76], a luta política «deve ser acompanhada por uma mudança de consciência»[77]. Esta mudança não é apenas o desenvolvimento da consciência; ela visa fundamentalmente um novo «sistema de necessidades», que incluiria uma sensibilidade, uma imaginação e uma razão emancipadas do domínio castrador da exploração. Esta emancipação só pode ser obra da arte revolucionária, cujas «qualidades essencialmente subjectivas se afirmem contra a dura objectividade da luta de classes»[78]. Neste sentido, «a possibilidade de uma aliança entre «o povo» e a arte pressupõe – segundo Marcuse – que os homens e as mulheres administrados pelo capitalismo monopolista desaprendam a linguagem, os conceitos e as imagens desta administração, que experimentem a dimensão da mudança qualitativa, que reivindiquem a sua subjectividade, a sua interioridade»[79].

Como desprezou a interioridade e o individualismo da literatura burguesa, a crítica literária marxista deixou escapar o potencial subversivo da arte. Reduzir a subjectividade a um colectivo social é perder a dimensão subversiva da arte. Para Marcuse, a noção de subjectividade é, pelo contrário, uma noção subversiva, dado que aponta para «uma dimensão de vida não lucrativa»[80]: a negação do espírito capitalista que persegue o lucro em todas as dimensões da vida social e cultural.

«Se a subjectividade é uma «realização» da era burguesa, é pelo menos uma força antagónica na sociedade capitalista. (...) Na verdade, o conceito do indivíduo burguês tornou-se o contraponto ideológico do sujeito económico competitivo e do chefe de família autoritário. sem dúvida, o conceito de indivíduo que se desenvolve livremente em solidariedade com outros só pode tornar-se realidade numa sociedade socialista. Mas, o perído fascista e o capitalismo monopolista mudaram decididamente o valor político destes conceitos. A «fuga para a interioridade» e a insistência numa esfera privada podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da existência humana. A interioridade e a subjectividade talvez venham a tornar-se o espaço interior e exterior da subversão da experiência, da emergência de outro universo. Hoje, a rejeição do indivíduo como um conceito «burguês» lembra e pressagia actuações fascistas. A solidariedade e a comunidade não significam a absorção do indivíduo. Originam-se antes na decisão individual autónoma; unem indivíduos livremente associados, e não massas»[81].

A partir dos anos 40, devido à experiência terrível do fascismo e ao advento de uma cultura de massas no Ocidente, a teoria crítica da sociedade começou a exprimir uma grande preocupação pela integridade e autonomia do indivíduo humano. Esta inflexão teórica e política da teoria crítica tinha e tem por finalidade a defesa do indivíduo perante o processo de integração social em curso. A defesa marcuseana da subjectividade rebelde como força subversiva aproxima-se das preocupações de cunho individualista de Horkheimer:

«O indivíduo totalmente desenvolvido é a consumação de uma sociedade totalmente desenvolvida. A emancipação do indivíduo não é uma emancipação da sociedade, mas o resultado da liberação da sociedade da atomização. Uma atomização que pode atingir o cume nos períodos de colectivização e cultura de massas»[82].

A sociedade administrada e desencatada silencia os indivíduos, convertendo-os em átomos sociais submetidos e sujeitados aos seus mecanismos de controle social e ideológico. Na luta do indivíduo contra a socialização total manifesta-se um traço trágico, que a sociedade existente quis sufocar, ao procurar a sua absorção social total. Como escreve Horkheimer:

«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as presonalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. (...) Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania»[83].

O retorno do trágico, de que nos fala Domenach, manifesta-se nessa luta desigual da subjectividade rebelde contra o processo de integração social que procura a sua anulação. De certo modo, na sociedade estabelecida, a tragédia é resistência individual contra a massificação total.

A posição de Marcuse, no que diz respeito às relações entre arte e práxis radical, pode ser resumida em duas teses:

1. A subversão da experiência própria da arte e a rebelião contra o princípio de realidade estabelecida contida nesta subversão estética não pode ser traduzida para a práxis política.

2. O potencial radical da arte reside precisamente nesta não identidade entre arte e práxis política.

Assim formuladas, estas teses constituem uma crítica radical da solução dada pelo realismo socialista ao mesmo problema. Marcuse já tinha criticado severamente o realismo socialista na sua obra O Marxismo Soviético, mas a sua crítica é ainda demasiado benévola quando comparada com a que Adorno lhe dirige: «Mesmo do ponto de vista social, elas (as obras de arte) são consciência recta: é melhor não haver arte alguma do que o realismo socialista»[84].

Em face disso, Marcuse coloca as seguintes questões:

«Como pode (o potencial radical da arte) encontrar representação válida numa obra de arte e como pode ela tornar-se um factor de transformação da consciência? Como pode a arte falar a linguagem de uma experiência radicalmente diferente, como pode ela representar a diferença qualitativa? Como pode a arte invocar imagens e necessidades de libertação que penetram na profunda dimensão da existência humana, como pode ela articular a experiência não só de uma classe particular, mas de todos os oprimidos?»[85].

5. FORMA ESTÉTICA, SUBLIMAÇÃO ESTÉTICA E MIMESE

A diferença qualitativa e a verdade da arte «não se constitui a si própria na selecção de um campo determinado, onde a arte pode preservar a sua autonomia» e «também não é apenas uma questão de estilo»[86]. A autonomia da arte em relação à sociedade estabelecida nunca é completa e total. «Nos seus verdadeiros elementos (palavra, cor, tom), a arte depende do material cultural transmitido; a arte compartilha-o com a sociedade existente. E por muito que a arte subverta os significados normais das palavras e das imagens, a transfiguração é ainda a de um dado material. É também esse o caso quando se destroem as palavras, quando se inventam outras novas – de outro modo, toda a comunicação seria cortada. Esta limitação da autonomia estética é a condição sob a qual a arte pode tornar-se um factor social»[87].

FORMA ESTÉTICA. Deste modo, a arte, como sublinha Marcuse, «faz inevitavelmente parte do que existe e só como parte do que existe fala contra o que existe. Esta contradição é preservada e resolvida (aufgehoben) na forma estética, que dá ao conteúdo familiar e à experiência familiar o poder de afastamento – e que leva ao aparecimento de uma nova consciência e de uma nova percepção»[88]. A diferença qualitativa da arte reside na forma estética, que, segundo Marcuse, «não se opõe ao conteúdo, nem mesmo dialecticamente. Na obra de arte, a forma torna-se conteúdo e vice-versa»[89].

Assim, «uma peça, um romance tornam-se obras literárias em virtude da forma que «incorpora» e sublima «o assunto»»[90]. Mas, na obra de arte, «este «assunto», despido da sua imediatidade, torna-se algo qualitativamente diferente, parte de outra realidade. Mesmo onde um fragmento de realidade ficou por transformar (...), o conteúdo é mudado pela obra como um todo; o seu sentido pode até tornar-se no oposto»[91]. E nada na obra pode ser mudado, sob pena de reverter à falsa imediatidade da expressão. De facto, «a expressão deliberadamente privada da forma «banaliza», porquanto suprime a oposição ao universo estabelecido do discurso – uma oposição que se cristaliza na forma estética»[92].

SUBLIMAÇÃO ESTÉTICA. «A submissão à forma estética é o veículo da sublimação não-conformista, que acompanha a dessublimação» que ocorre na percepção dos indivíduos – nos seus pensamentos, juízos, sentimentos, invalidando as normas, as necessidades e os valores dominantes. «A sua unidade constitui-se na obra. O ego e o id, os objectivos e as emoções instintivos, a racionalidade e a imaginação são removidos da sua socialização por uma sociedade repressiva e lutam pela autonomia – embora num mundo fictício. Mas, o encontro com o mundo fictício reestrutura a consciência e fornece representação sensual a uma experiência contra-societal. A sublimação estética liberta e valida assim os sonhos de felicidade e tristeza da infância e da idade adulta»[93].

Prevendo uma reacção dos realistas, Marcuse insere o realismo no contexto da sublimação estética:

«Não é só a poesia e o drama, mas também o romance realista, que deve transformar a realidade, a qual constitui o seu material, de forma a re-presentar a sua essência visionada pela arte. Qualquer realidade histórica pode transformar-se no «palco» de tal mimese. A única exigência é que deve ser estilizada, submetida à «formação» estética»[94]. Esta estilização «permite a transvalorização das normas do princípio da realidade estabelecida – dessublimação na base da sublimação original, dossolução dos tabus sociais, da administração social de Eros e Thanatos»[95].

MIMESE. Mas o que é especificamente a mimese? Para Marcuse, «a mimese é a representação através do distanciamento, a subversão da consciência. A experiência é intensificada até ao ponto de ruptura; o mundo aparece do mesmo modo (...) aos amantes de todos os tempos. Experimentam o mundo desmitificado. A intensificação da percepção pode ir ao ponto de distorcer as coisas de modo que o indizível é dito, o invisível se torna visível e o insuportável explode. Assim, a transformação estética transforma-se em denúncia – mas também em celebração do que resiste à injustiça e ao terror, e do que ainda se pode salvar»[96].

Mas «a denúncia não se esgota a si mesma no reconhecimento do mal; a arte é também a promessa da libertação. Esta promessa é, também, uma qualidade da forma estética ou, mais precisamente, do belo como uma qualidade da forma estética. A promessa é arrancada da sociedade estabelecida. Invoca uma imagem do fim do poder, a aparência (Schein) de liberdade. Mas só a aparência; naturalmente, a realização desta promessa não está dentro das possibilidades da arte»[97].

A inversão da história é, para Marcuse, «uma ideia reguladora da arte, na lealdade mantida (até à morte) à visão de um mundo melhor, uma visão que mesmo na derrota permanece autêntica. Ao mesmo tempo, a arte milita contra a noção do progresso inexorável, contra a cega confiança numa humanidade que eventualmente se afirmará. De outro modo, a obra de de arte e a sua pretensão de verdade seriam falsas»[98].

O pessimismo e a tristeza são inerentes à arte. A arte não promete o triunfo final do bem sobre o mal. «Na mimese transformadora, a imagem da libertação é quebrada pela realidade. Se a arte fosse prometer que, no fim, o bem triunfa sobre o mal, tal promessa seria refutada pela verdade histórica. Na realidade, é o mal que triunfa, e apenas existem ilhas de bem onde nos podemos refugiar durante algum tempo. As verdadeiras obras de arte têm disso consciência; rejeitam as promessas fáceis; recusam o aliviante final feliz. Devem rejeitá-lo, pois o reino da liberdade fica para lá da mimese. O final feliz é «o contrário» de arte»[99]. E, quando aparece, ele é negado pela obra no seu conjunto, como sucede no Fausto de Goethe.

Mas o que importa verdadeiramente na obra de arte não é tanto a questão do final feliz, mas fundamentalmente «a obra como um todo»[100]. Nesta perspectiva, a obra «preserva a lembrança de coisas passadas», que «podem ser superadas (aufgehoben) na resolução do conflito trágico, na realização conseguida», mas, mesmo assim, «continuam presentes na ansiedade em relação ao futuro»[101].

«A arte não pode cumprir a sua promessa e a realidade não oferece promessas, mas apenas ocasiões»[102]. Para Marcuse, a arte é uma bela ilusão (Schoner Schein) e, neste aspecto, a sua teoria estética está de acordo com a estética burguesa idealista, a qual «sempre entendeu a aparência (Schein) como aparência da verdade, uma verdade própria da arte»[103].

Este conceito da arte despoja a realidade concreta da sua pretensão à legitimação total. «Assim, há duas realidades e dois tipos de verdade. A cognição e a experiência são antagonicamente divididas, pois a arte como ilusão (Schein) tem um conteúdo e uma função cognitivos. A verdade única da arte rompe com a realidade de todos os dias e das férias, que bloqueiam toda a dimensão da sociedade e da natureza. A arte é a transcendência para esta dimensão onde a sua autonomia se constitui como autonomia na contradição»[104].

6. MUNDO IRREAL E CATARSE

«O mundo de uma obra da arte é «irreal»»[105], no sentido de ser «uma realidade fictícia»[106]. Contudo, este mundo não é inferior em relação à realidade existente. Marcuse diz mesmo que «lhe é superior e qualitativamente «diferente»»[107]. «Como mundo fictício, como ilusão (Schein), contém mais verdade que a realidade de todos os dias. Pois, esta última é mistificada nas suas instituições e relações, que fazem da necessidade uma escolha e da alienação uma auto-realização. Só no «mundo ilusório» as coisas parecem o que são e o que podem ser. Em virtude desta verdade (que só a arte pode exprimir em representação sensual), o mundo é invertido – é a realidade concreta, o mundo vulgar que agora aparece como realidade falsa, ilusória, enganadora»[108].

Deste modo, a teoria estética de Marcuse incorpora uma das teses da estética idealista, em particular a de Hegel, segundo a qual o mundo da arte é aparência da verdade, sendo a realidade quotidiana mera ilusão. Esta tese é confirmada, de modo materialista, pela análise de Marx da divergência da essência e da aparência na sociedade capitalista. «A obra de arte (...) não encobre o que existe – revela-o»[109], ao mesmo tempo que cria imagens da «outra» realidade possível. Esta outra realidade possível é, segundo Marcuse, absolutamente «trans-histórica, porquanto transcende toda e qualquer situação específica»[110].

Contudo, «a arte não pode traduzir a sua visão para a realidade. Permanece um mundo «fictício», embora como tal visione e antecipe a realidade. Assim a arte corrige a sua idealidade; a esperança que representa não deve permanecer um meio ideal. Tal é o imperativo categórico oculto da arte. A sua realização situa-se fora da arte»[111], mais precisamente na práxis radical.

«Os elementos críticos (...) da forma estética também serão operativos nas obras de arte predominantemente afirmativas? E vice-versa: a negação extrema na arte conterá ainda afirmação?»[112].

«A forma estética, em virtude da qual uma obra se opõe à realidade estabelecida é, ao mesmo tempo, uma forma de afirmação através da catarse reconciliadora»[113]. No seu sentido aristotélico, catarse designava «a purgação das paixões». Segundo Aristóteles, o teatro permitia ao homem libertar-se das suas paixões, ao vê-las representadas. Josef Breuer retomou o termo para designar o tipo de tratamento pelo qual o histérico se libertava dos seus sintomas, representando, sob hipnose, a cena que estava na sua origem. Para Marcuse, «esta catarse é um acontecimento mais ontológico que psicológico. Baseia-se nas qualidades específicas da própria forma, na sua ordem não repressiva, no seu poder cognitivo, na sua imagem de sofrimento que chegou ao fim. Mas, a «solução», a reconciliação, que a catarse oferece, também preserva o irreconciliável»[114].

7. A DIALÉCTICA DA BELEZA

«A formação estética segue a lei do Belo e a dialéctica da afirmação e da negação, da consolação e da tristeza é a dialéctica do Belo»[115].

Com esta afirmação, Marcuse recupera a categoria central da estética burguesa: a ideia de Belo, que tinha sido recusada pela estética marxista ortodoxa. Na estética marcuseana, a Beleza é dotada de um grande potencial radical. As fontes deste potencial «encontram-se, primeiro, na qualidade erótica do Belo, que persiste ao longo de todas as mudanças no «juízo de gosto»»[116]. «Como pertencente ao domínio do Eros, o Belo representa o princípio do prazer. Assim, revolta-se contra o predominanta princípio da realidade de domínio. A obre de arte fala a linguagem libertadora, invoca as imagens libertadoras da subordinação da morte e da destruição da vontade de viver. Este é o elemento emancipatório na afirmação estética»[117].

O Belo pode ser uma qualidade de uma totalidade (social) tanto regressiva como progressiva. Esta «neutralidade» aparente do Belo é abolida na literatura pela mimese transformadora (ou estilização), que «petrifica os senhores do terror em monumentos que sobrevivem – blocos de memória que não se renderão ao esquecimento»[118]. «Na forma estética 8da peça, do poema , do romance), o terror é evocado, chamado pelo seu nome, para testemunhar, para se denunciar»[119]. «Em virtude desta realização da mimese, estas obras (que levam ao reconhecimento da infame realidade do fascismo) contêm a qualidade de Beleza na sua forma talvez mais sublimada: com o Eros político»[120].

«A obra de arte conseguida perpetua a memória do momento de prazer. E a obra de arte é bela na medida em que opõe a sua própria ordem à da realidade – a sua ordem não repressiva, onde a própria maldição é proferida em nome do Eros»[121]. «O Belo pertence às imagens da libertação»[122]. «A substância sensual do Belo é preservada na sublimação estética. A autonomia da arte e o seu potencial político manifestam-se no poder cognitivo e emancipatório desta sensualidade. Não é, portanto, surpreendente que, historicamente, o ataque à arte autónoma se una à denúncia da sensualidade em nome da moralidade e da religião»[123].

A relação paradoxal da arte com o tempo é constituída por meio da sensibilidade. Para Marcuse, esta relação é paradoxal, « porque o que é experimentado através dea sensibilidade é presente, embora a arte não possa mostrar o presente sem o mostrar como passado. O que ase tornou forma na obra de arte já aconteceu: é recordado, re-apresentado. A mimese traduz a realidade para a memória. Nesta recordação, a arte reconheceu o que é e o que podia ser, dentro e fora das condições sociais. A arte retirou este conhecimento da esfera do conceito abstrato e implantou-o no domínio da sensualidade»[124]. «O seu poder cognitivo estrai a sua força deste domínio. A força sensual do Belo mantém a promessa viva – a memória da felicidade passada, que procura regressar»[125].

A arte dá testemunho da necessidade de libertação, ao mesmo tempo que atesta os seus limites. Porque «o que foi feito não pode ser desfeito; o que passou não pode ser reavido. A história é culpa, mas não redenção»[126]. A arte preserva, com a promessa de felicidade, a memória dos objectos inatingidos e, só deste modo, «pode entrar, como uma «ideia reguladora», na luta desesperada pela transformação do mundo. (…) Contra todo o feiticismo das forças produtivas, contra a escravização contínua dos indivíduos pelas condições objectivas (que continuam a ser as do domínio), a arte representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo»[127].

8. ESTÉTICA DA RESISTÊNCIA E ANTI-ARTE

O conceito da arte como autonomia na contradição permite a Marcuse rejeitar a anti-arte como um movimento artístico integrado e ideológico.

«Quando a arte abandona esta autonomia e com ela a forma estética em que se expressa a autonomia, a arte sucumbe perante a realidade que procura abarcar e denunciar»[128]. Ao rejeitarem a sublimação estética, as obras de arte transformam-se «em pedaços e fragmentos da verdadeira sociedade, cuja «anti-arte» pretendem ser. A anti-arte é auto-anuladora desde o princípio»[129]. A suposição da anti-arte segundo a qual a realidade está a desintegrar-se colide com o actual estado de coisas, onde se experimenta a reprodução e a integração do todo existente e administrado. Só a forma estética pode, em virtude da sua alteridade, opôr-se a esta integração como estética da resistência (Peter Weiss). Além disso, a concepção da arte como expressão directa da vida não pode vencer a separação da arte da vida. A imediatidade da anti-arte é falsa e a libertação e a dessublimação que dela decorrem «são a mimese sem transformação»[130]. Como escreve Marcuse:

«A renúncia à forma estética não anula a diferença entre a arte e a vida – mas anula a que existe entre essência e aparência, na qual reside a verdade da arte e que determina o valor político da arte. A dessublimação da arte pretende libertar a espontaneidade – tanto do artista como da pessoa que a recebe. Mas assim como, na práxis radical, a espontaneidade só pode fazer avançar o movimento de libertação como espontaneidade mediatizada, isto é, resultante da transformação da consciência – o mesmo acontece na arte. Sem esta dupla transformação (dos sujeitos e do seu mundo), a dessublimação estética da arte só pode levar o artista a tornar-se supérfluo, sem democratizar e generalizar a criatividade.

«Neste sentido, a renúncia à forma estética é abdicação da responsabilidade. Priva a arte da verdadeira forma em que pode criar essa outra realidade dentro da estabelecida – o cosmos da esperança»[131].

Ao abdicar da sua autonomia artística, a anti-arte infiltra-se no conjunto dos valores de uso, acabando por ocorrer a sua degeneração na cultura de massas comercializada. Para Marcuse, a anti-arte está longe de se transformar numa contra-cultura subversiva, porque esta «teria de insistir na autonomia da arte, na sua própria arte autónoma»[132].

A crítica marcuseana da anti-arte reafirma claramente a autonomia da arte autêntica frente tanto à realidade existente como à arte heterónoma cativa da indústria da arte. «Uma obra de arte só pode obter relevância política como obra autónoma. A forma estética é essencial à sua função social. As qualidades da forma negam as da sociedade repressiva – as qualidades da sua vida, do seu trabalho, o seu amor»[133]. A qualidade estética e a tendência política da arte estão internamente relacionadas, mas a sua unidade «é antagónica»[134].

 

CONCLUSÃO

A teoria estética de Marcuse procura mastrar que a arte pode entrar, com oideia reguladora, na luta desesperada pela transformação do mundo, uma vez que representa o objectivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo. Deste modo, a sua teoria estética continua ligada à teoria marxista da sociedade, que «compreende a sociedade estabelecida como uma realidade que deve ser mudada»[135]. Esta mudança qualitativa visa a instauração de uma sociedade socialista entendida como «uma sociedade melhor em que os seres humanos gozarião de mais liberdade e mais felicidade»[136]. Contudo, actualmente, «os seres humanos administrados reproduzem […] a própria repressão e renunciam à ruptura com a realidade»[137]. Nesta situação, tanto a teoria crítica como o objectivo de uma sociedade melhor adquirem um carácter abstracto e ideológico. É neste contexto social que Marcuse procura pensar a afinidade e a oposição entre a arte e a práxis radical.

«Ambas visionam um universo que, embora provenha das relações sociais existentes, também liberta os indivíduos destas relações»[138]. Esta visão aparece como o futuro permanente da práxis revolucionária. Para Marcuse, a sociedade socialista não resolve todos os conflitos entre o universal e o particular, entre os seres humanos e a natureza, entre os indivíduos uns com os outros. «O socialismo não liberta o Eros de Thanatos, nem poderia fazê-lo»[139]. Este limite impele «a revolução para além de todo o estado de liberdade conseguido»[140]. Isto significa que a revolução numca é definitiva, mas sempre permanente. É sempre «a luta pelo impossível, contra o inconquistável cujo domínio talvez possa, no entanto, ser reduzido»[141].

«A arte reflecte esta dinâmica na insistência na sua própria verdade, que assenta na realidade social, sendo, no entanto, a sua outra face. A arte abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária»[142].

A arte antecipa um outro princípio da realidade, que a práxis radical procura ou devia procurar realizar. «A autonomia da arte reflecte a ausência de liberdade dos indivíduos na sociedade sem liberdade»[143]. A arte mostra a liberdade negada aos indivíduos pela sociedade repressiva. «Se as pessoas fossem livres, então a arte seria a forma e a expressão da sua liberdade»[144]. Mas, como as pessoas não são livres, «a arte continua marcada pela ausência de liberdade; ao contradizê-la, adquire a sua autonomia. O nomos a que a arte obedece não é o do princípio da realidade estabelecida, mas a sua negação»[145]. A arte antecipa, no seio da sociedade repressiva, a sua negação, isto é, a sociedade livre, embora de forma necessariamente sublimada e alienada. O que a práxis radical procura realizar é o que já está realizado na forma estética, embora de forma sublimada e irreal. A arte é, de certo modo, utopia. Mas «a utopia na grande arte nunca é simples negação do princípio da realidade (senão seria abstracta, má-utopia), mas a sua preservação transcendente (Aufhebung) em que o passado e o presente projectam a sua sombra na realização. A autêntica utopia baseia-se na memória»[146].

Se «toda a reificação é – como afirmam Adorno e Horkheimer – um esquecimento»[147], então a arte é o contrário de toda a reificação: a arte é memória – memória do sofrimento e do terror. «A arte combate a reificação fazendo falar, cantar e talvez dançar a palavra petrificada»[148]. «O esquecer os sofrimentos do passado e as alegrias passadas torna mais fácil a vida sob um princípio de realidade repressiva. Pelo contrário, a lembrança estimula o impulso pela conquista do sofrimento e da permanência da alegria»[149].

Contudo, sob o princípio da realidade estabelecida, «a força da lembrança é frustrada: a própria alegria é eclipsada pela dor»[150]. A inexorabilidade deste eclipse é uma questão aberta, porque «o horizonte da história ainda está aberto. Se a lembrança das coisas passadas se tornasse um motivo poderoso na luta pela mudança do mundo, a luta seria empreendida para uma revolução até aqui suprimida nas revoluções históricas anteriores»[151].

Um aspecto que não foi aqui referido diz respeito ao carácter afirmativo da cultura e ao facto de uma civilização do prazer constituir um obstáculo à tarefa da libertação: Marcuse nem sempre foi claro a este propósito. Contudo, ele sabia que a gratificação imediata e a educação sem esforço paralisa a crítica e a preparação subjectiva para a Grande Recusa.

Esta observação aponta para uma outra leitura do pensamento estético e político de Herbert Marcuse, num confronto com as estéticas pós-modernas e levando em conta a estética da recepção de W. Iser e de H.R. Jauss, a teoria da vanguarda de Peter Bürger e a sua crítica da estética idealista, o conceito de soberania da arte de C. Menke, a ideologia estética de Paul de Man e o contributo fresco de Marshall Berman. A noção marcuseana de subjectividade rebelde pode funcionar como fio condutor, desde que reformulada em função dos modelos relacionais do Self, sem cair na tentação sofista do consenso universal de Habermas. 

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